O choro de Valéria
Gustavo perdeu um dente num acidente doméstico. O olho esquerdo ficou inchado, com a esclerótica avermelhada. Xingou a cadeira que não sustentou seu peso de 94 quilos, distribuídos nos seus 1,73 de altura. Foi ao dentista e, no outro dia, ao oftalmologista. Perdeu quatro dias de trabalho, mas tudo foi resolvido pelo plano de saúde. Pois bem, uma variável no seu estado de rotina homeostática, e pronto: a culpabilização.
Nunca faltava. Dez anos de trabalho e nunca... nunca faltava. Só faltaria ao trabalho se fosse ao próprio enterro, levando a própria certidão de óbito. Sua cabeça encheu-se de preocupação.
— Será? Será que o Marquinhos pode pegar o meu cargo? E a Daiane? Ela é esperta e rápida. Meu Deus!
— Amor! Tenho que ir — disse Gustavo.
Valéria respondeu com a voz rouca de sono:
— Está louco? Você não está de licença?
— Não posso — disse ele. — Eu preciso ir, eu preciso sair, eu preciso aparecer. Quem não é visto, não é lembrado.
— Vai, então, só que é aquilo. Você está amparado pelo atestado médico. Apesar da prótese dentária, o seu olho ainda não está legal.
— Valéria, eu enxergo bem, muito bem, e não precisa me perguntar quantos dedos tem na sua mão.
— Fica em casa. Todo mundo já passou por problemas, entende? Você não está dando nenhum migué, não.
Gustavo mal se secou, botou a calça, abotoou a blusa, e, com biscoitos na boca, gritou algo incompreensível que parecia ser um "até logo" e cruzou o portão para a rua.
Valéria, da janela, o viu pela última vez.
Foi atropelado, pois o seu olho esquerdo não conseguiu detectar uma moto que vinha em alta velocidade.
Daiane agora era a nova gerente.