O Bola

Quando o Brasil conquistou o tricampeonato na Copa do Mundo de futebol de 1970, no México, a celebração em todo o país foi incomparável. O céu ficou repleto de balões de várias cores. Fogos de artifício explodiam no céu como se fossem milho de pipocas estourando na panela. Carros, adornados com as cores verde e amarela, desfilavam pelas ruas ao som de buzinas, em harmonia com a euforia coletiva. O povo celebrava a vitória com uma alegria sem precedentes. Enquanto isso, pássaros, gatos e cães, assustados pelo som estrondoso, se refugiavam em seus esconderijos, à espera do término da cacofonia para retomar as ruas.

No dia seguinte à comemoração, todos voltaram às suas rotinas habituais. As aves, com suas plumagens coloridas, ornamentavam o céu com seus voos graciosos. Os gatos e cães passeavam ou descansavam, alternando entre suas atividades e uma soneca. Assim que as crianças da Rua da Alegria voltaram da escola, perceberam a ausência de um cão, o mais alegre e adorado por todos, o Bola. Isso não era normal, pois o Bola sabia do horário que elas chegavam, corria para junto das crianças, latia, pulava mais que uma perereca e o seu rabo girava como um catavento.

A periferia de São Paulo, no início dos anos 1970, ostentava um cenário pitoresco, marcado por estradas não asfaltadas e moradias adornadas por hortas abundantes, pomares produtivos e uma exuberância de vegetação. Uma ampla diversidade de pássaros voavam no céu. A coleta de resíduos não era realizada por caminhões, portanto, os residentes depositavam os detritos alimentares na parte externa de suas casas. Aves, gatos e cães, que circulavam e não possuíam donos definidos, faziam desses restos sua fonte de alimentação. Algumas residências utilizavam esses materiais orgânicos para enriquecer o solo de suas hortas, jardins e pomares. Embora esses animais não fossem propriedade de ninguém específico, todos recebiam cuidados da comunidade, assegurando que sempre houvesse alimento e água disponível.

Bola apareceu na Rua da Alegria, maltratado e faminto. Logo os meninos da rua o adotaram e cuidaram do cão caramelo e lhe deram o nome de Rex. Esse apelido parecia não ter agradado ao cachorro, pois ele não reagia. As crianças, compreensivas, aguardaram que ele se recuperasse, pois ele estava deveras debilitado. Um dia, quando os garotos da rua estavam jogando futebol, Rex despertou. Correu atrás da bola, passou por cima, rolou, levantou e a seguiu para onde ela ia. Sem conseguir praticar futebol, os garotos pararam de jogar e formaram um círculo, o Rex ficou no centro, assim que o Chico deu uma cabeçada na pelota e enviou para o cachorro, ele devolveu com a ponta do seu focinho. Felizes, a partir daquele dia, a brincadeira preferida da criançada era lançar a pelota para o cão, que devolvia saltando e acertava a esfera com a ponta do nariz. Então, a partir desse dia, mudaram o nome dele para Bola.

A Rua da Alegria possuía uma inclinação de vinte graus e terminava em um terreno plano de mais ou menos cem metros. No entanto, era nessa planície que residia o perigo e a dor de cabeça dos meninos da rua. A criançada era proibida de brincar com qualquer objeto redondo, andar de bicicleta e correr nesse trecho. Quando a bola caía na propriedade do senhor David, ele nunca permitia que a recuperasse, ignorava os chamados e as palmas. Durante a noite, quando todos dormiam, o senhor David saía de dentro da sua casa, pegava a bola caída no seu quintal, danificava-a com uma faca e jogava de volta na rua. No dia seguinte, as crianças encontravam a bola perfurada no meio do caminho. O senhor David nunca se mostrava, observava tudo pela fresta da cortina. Ele detestava qualquer movimentação em frente à sua morada: alguém pedalando, jogando bola ou correndo. Para prevenir esse incômodo, na calada da noite, ele espalhava cacos de vidro pela rua em frente à sua residência.

Os jovens moradores da Rua da Alegria se organizavam em duas equipes distintas: aqueles que frequentavam a escola no período matutino e os que iam no período vespertino, após o almoço. Estudantes do turno da tarde assumiam a responsabilidade de vigiar a rua durante a manhã, enquanto os que estudavam de manhã faziam o mesmo pela tarde. Essa organização desempenhava um papel crucial na proteção dos cachorros e gatos, porque durante a semana, a vila se deparava com a inesperada aparição da carrocinha. Este veículo, equipado com uma jaula na metade de sua carroceria e com caçadores em pé na outra metade, lançavam cordas em direção aos animais, tentando capturá-los pelo rabo ou pelo pescoço. Corria na época uma lenda, que os bichos apreendidos eram eliminados e depois viravam linguiças e salsichas. Elas, as crianças , acreditavam nessa história, pois ninguém falava sobre o assunto o que se iria fazer com os animais. Ninguém sabia. Era um mistério. Quando a carrocinha surgia no início da rua, um alvoroço se instalava: todos corriam, gritavam e os latidos dos cães ecoavam em desespero porque sabiam que estavam em perigo. As crianças levavam os cães para um local seguro, enquanto os gatos se refugiavam nas árvores, escondendo-se entre os galhos e folhas.

Na tarde seguinte à vitória na Copa do Mundo de 1970, todas as crianças se reuniram na rua após as aulas. Elas estavam preocupadas e se perguntavam sobre o paradeiro de Bola, mas ninguém possuía uma resposta. Então, elaboraram um plano estratégico de busca. Devido ao alto número de infantes, decidiram dividir-se em vários grupos de três garotos. Cada grupo tinha a tarefa de procurar Bola em qualquer lugar: fosse em uma casa, em um canto, ou mesmo em um buraco. Chico, Dedé e Zeca foram encarregados de investigar o fim da rua, a área perigosa onde havia cacos de vidros espalhados pelo chão, do malfeitor, o homem que rasgava as bolas das crianças, onde se localizava a casa do Sr. David.

Durante o trajeto, Chico exclamava animado: "Vamos jogar bola!" Enquanto arremessava a esfera para o alto, Dedé, por conseguinte, relembrava a última vez em que vira o cão e confessou: "Lembro-me bem, Bola estava conosco antes do início do jogo. Mas, assim que começou o jogo, após o primeiro gol do Brasil contra a Itália, os fogos de artifício começaram a enfeitar o céu, assustado e com medo, ele fugiu, percorrendo a rua, para se esconder em algum canto". Chico e Zeca concordaram com o relato de Dedé. Zeca, então, ponderou: "Ontem foi domingo, dia em que não há coleta de animais, nem hoje a carrocinha passou na rua. Já era hora do Bola reaparecer, sua falta é sentida por todos nós. Há algo estranho nisso tudo". Os três amigos continuavam rua afora, sentindo-se apreensivos, dominados pela desconfortável sensação de que algo ruim pudesse ter acontecido com o cachorro mais alegre e brincalhão da vizinhança. Para aliviar a tensão, trocavam passes com a pelota, numa tentativa de amenizar a preocupação que pairava entre eles.

Ao alcançar o fim da rua, na vastidão de terra marrom sob um sol resplandecente, os fragmentos de vidro espalhados pelo chão cintilavam, assemelhando-se a cristais. Os três meninos trajavam uniformes escolares e tênis, o que lhes permitia percorrer o caminho sem risco de ferir os pés. De um lado, encontrava-se a casa do senhor David, encerrada por um muro branco e um portão de ferro de três metros de altura, adornado com pontas de aço em forma de flecha de lança. No oposto, havia a parede de tijolos vermelhos da garagem da oficina de caminhões, no final, embutida da parede, avistava-se uma estrutura retangular que abrigava relógios contadores de água e luz. Era esse local que os meninos ansiavam alcançar, na esperança de encontrar Bola escondido ali. Cautelosos, avançavam devagar, evitando os cacos de vidro, chegando ao local com uma sensibilidade na flor da pele. A caixa dos registros da oficina era a última chance de encontrar Bola, após terem vasculhado toda a rua.

Assim que chegaram, encontraram o Bola deitado no chão como se estivesse dormindo. Chamaram: Acorda Bola. Acorda! Mas ele não reagiu. Ao lado havia um pouco de comida, não tinha nenhuma mosca sobrevoando e uma variedade de formigas mortas. Os garotos cutucaram o Bola, mas ele não se mexia. Logo perceberam que o cão com dez anos, cheio de vida, alegre, que nunca fez mal a ninguém, o melhor amigo das crianças estava morto, ele foi envenenado. Os três lamentaram a perda do cachorro tão amado. Dedé pegou o Bola no colo e carregou-o para todos os amigos da rua verem pela última vez e se despedirem do animal.

Chico procurou seu tio, Pirão, com o intuito de organizar o enterro do Bola no quintal ao lado da garagem, uma vez que as crianças pretendiam realizar no meio da rua, onde o animal adorava brincar. Pirão não só concordou com a proposta, como também sugeriu um lugar apropriado perto da parede, onde havia um gramado e flores. O sepultamento teve a presença de todas as crianças e alguns moradores. Os garotos cavaram a cova e, em vez de flores, cobriram o Bola com todas as bolas furadas e desgastadas, como se fosse um cobertor. À medida que a terra cobria o cachorro, acontecia um silêncio jamais visto entre os garotos da rua, porque eles sentiam a perda de um amigo querido. Do outro lado da rua, na janela da varanda de sua casa, enquanto alguns meninos choravam, o senhor David ria.