O REFÚGIO.

Terça-feira, Sorocaba.

João desejava ficar a manhã inteira incomunicável, afinal, era dia de folga. A semana no mercado onde trabalhava havia sido pesada, terrivelmente irritante. João trabalhava com o público, atendente em um balcão de açougue, cinco anos de labuta no mesmo lugar, mercado enorme, fazendo parte de uma grande rede no interior paulista. A loja era belíssima, de organização impecável, grande variedade de produtos e com um diferencial nos preços. Todas essas qualidades aliada com um bom atendimento fez da loja uma das mais movimentadas da cidade de Sorocaba. No entanto, havia o outro lado da história, ou melhor, do balcão, um lado que ninguém conhecia.

Era dia de folga, preciosa folga.

Não era costume dele sair ou ficar incomunicável, no entanto, João implorou para a esposa que só o importunasse em caso de morte, do contrário, gostaria de tirar o dia sozinho em algum lugar qualquer e com o máximo de silêncio possível. Por isso, trataria de sair logo cedo, a mulher nem bem terminou de passar o café e João já estava de pé. Conversou pouco com a esposa, tomou o seu café apressadamente. A única coisa que fez foi levar a filha na escola, geralmente, era a esposa quem o fazia, porém, sendo folga, ele não queria quebrar o ritual que tinha com sua pequena, que, aos sorrisos, segurando as mãos de seu pai foi para escola cantarolando. João se admirava da filha, o sorriso sempre espontâneo, quase nunca estava triste, João desejava voltar a ser criança, ser como a filha e ter novamente tal inocência no olhar e esquecer toda loucura da sua vida.

Era dia de folga, um único dia de descanso.

Houve um tempo em que ele trabalhou em uma importante indústria de metalurgia. Uma fábrica que ficava na cidade vizinha. João trabalhou por quinze anos nessa indústria, o seu desejo era ter continuado, assim como os colegas, ter estudado, alçado vagas importantes na empresa, ter um nome, uma carreira, no entanto, nada aconteceu como ele gostaria. As lembranças da época em que trabalhava na manutenção de refratários ainda era viva na memória, a tal ponto que, se alguém lhe pedisse para explicar as etapas do processo de reforma de uma cuba eletrolítica, ele era capaz de dizer perfeitamente. João lembrava-se dos detalhes mínimos, números de tijolos refratários que se utilizava no revestimento lateral, no anel monolítico, enfim... Tudo era apenas lembrança seguida de dor misturada a raiva.

Ele voltou apenas para avisar a esposa que estava saindo. Disse que avisaria quando retornasse, que não era para se preocupar com o almoço. A esposa não fez objeções. Quando ele estava nesses dias de grande stress a melhor coisa a ser feita era deixá-lo em paz e quieto. No começo dessas crises, Maria Eduarda não sabia como lidar com a situação do marido, o que deixava as coisas ainda piores. Chegou ao ponto de quase se separarem. Por fim, Maria Eduarda foi aprendendo a lidar com as crises. Bastava apenas o silêncio, algum lugar quieto e logo a situação voltava ao normal.

Tudo estava relacionado ao trabalho, nos últimos meses o supermercado onde trabalhava estava com falta de funcionários no açougue, a dificuldade de encontrar profissionais era enorme, considerando, geralmente, quem pagava mais e oferecessem as melhores condições de trabalho ganhavam os melhores profissionais, o que não era a realidade de onde João estava. Outra questão que pesava muitíssimo eram as condições da profissão em si, não bastava saber cortar carnes, bifar uma peça ou desossar um dianteiro ou traseiro, tanto mais era ter um equilíbrio psicológico excelente. Haja vista o público cada vez mais exigente e menos paciente, sem empatia nenhuma com quem está do lado de dentro do balcão. Era um conjunto de situações delicadas e complexas que foi se acumulando dia após dia.

João retornou da escola da filha a passos lentos, observando cada pessoa, cada criança com os seus pais ou mães, alguns atrasados, correndo pela calçada para não perder o horário. Quando chegou em casa, a esposa estava cuidando da casa, atarefada com tanto serviço. João beijou a esposa, pegou a carteira e saiu, decidiu ir de ônibus, queria evitar sair com o carro e ter que enfrentar todos os stress do trânsito. O seu destino nesses dias caóticos era sempre o mesmo,um refúgio na verdade. Ou estaria em alguma livraria no shopping ou em algum sebo no centro da cidade.

O ponto de ônibus mais próximo de sua casa era na rua a de trás de onde morava, porém, os horários eram horríveis, por esse motivo, preferiu andar um pouco mais até a avenida Itavuvu, o BRT oferecia horários diversos e ônibus articulados, certa rapidez e conforto. Durante a caminhada até o ponto, João passou em frente ao antigo emprego, outro supermercado onde trabalhou por algum tempo. Foi nesse local que suas crises iniciaram, foi ali que descobriu o verdadeiro motivo de seus problemas, todo cansaço, a falta de disposição e tantos outros sintomas ligados a uma síndrome chamada Burnout. Na época ele não deu muita atenção, depois do diagnóstico, não procurou mais o médico, nem quis mais saber nada a respeito. Resolvendo as coisas do seu próprio jeito, como sempre fez a vida inteira. Porém, naquele último mês acendeu um terrível alerta, as crises pareciam ter voltado com toda sua força, esgotado-o completamente, sem dizer na vontade de explodir em raiva com qualquer pessoa que fosse. Ter que controlar as suas emoções era uma tarefa das mais difíceis na sua profissão. Por isso a dificuldade de achar profissionais que suportassem tanta pressão e ainda continuassem sorrindo era tão difícil.

O ponto estava relativamente vazio, para uma terça de manhã, tudo dentro da normalidade de sempre. Outra questão de seu trabalho era o fato de não ter um dia específico de folga, de tempos em tempos era necessário mudar as escalas para adequar as folgas dos funcionários, para muitos, horrível, João acostumou-se com as mudanças, passando até a gostar. A folga no domingo era diferente, a cada dois trabalhados, um de descanso. Muito diferente da indústria que disponibiliza sempre o sábado e o domingo. Com o passar dos anos João foi se adaptando, não havia escolhas, ele entendeu que o tanto mais rápido se adequar menos sofreria.

O ônibus se aproxima.

As pessoas apressadas passando a sua frente sem a menor cerimônia, quase o atropelando, como se ele não estivesse ali. João foi o último a entrar, sentou-se no primeiro lugar que viu vazio, o que era raro para o horário, o ônibus que pegou foi o da linha laranjeiras, todas as vezes lotado. O caminho até o centro não era demorado, o BRT tinha sua linha exclusiva até o terminal, o que garantia um pouco mais de agilidade. Quanto aos carros, quase sempre presos no engarrafamento da manhã com os seus motoristas nervosos sem ter muito o que fazer. Esse era um dos motivos que fazia-o escolher o ônibus ao invés do seu próprio carro, que saia da garagem somente quando muito necessário ou a pedido da esposa.

O ônibus sai lentamente, rangendo, ganhando velocidade aos poucos, da janela, pessoas que passavam, lojas, o shopping, transeuntes apressados. Dentro do ônibus cada um se perdia dentro do seu universo particular, dedos sempre ágeis na tela dos celulares, olhos grudados no mundo virtual. Ninguém ousava falar com ninguém, ao que estavam em pé, fones de ouvido. João era o único que não estava com os olhos e ouvidos acorrentados no aparelho. João passou a refletir nesse novo mundo modernizado, nessa, aldeia global escravizada.

O ônibus parou no semáforo, bem de frente onde ele trabalhava.

As primeiras horas não pareciam tão movimentadas na frente da loja, certamente que os colegas de balcão estariam aproveitando o movimento fraco para repor os embalados, o auto serviço e congelados, toda a parte externa. João virou o rosto para o lado oposto, não queira se prender naqueles pensamentos, era dia de folga, dia de descanso. Do outro lado havia uma grande loja de roupas, sapatos e bolsas, o movimento também era fraco. O ônibus então começa a movimentar, João observa as pessoas ao seu redor, tão próximas umas das outras, quase se esfregando, contudo, tão distantes de qualquer lugar, como se os celulares fossem uma espécie de prisão, de um isolamento da realidade. Ele então começou a pensar no tempo que era desperdiçado todos os dias, por milhões e milhões de pessoas pelo mundo. Quantos, por exemplo, não estão reclamando de falta de tempo para isso ou aquilo, no entanto, não percebem que mais da metade das horas que desejariam ter elas mesmas as jogam no ralo, vendo besteiras nas redes sociais.

Sorocaba era uma cidade dinâmica, parecia nunca parar, com os seus cidadãos sem movimento, indo e vindo apressados, sem tempo para uma boa conversa. Uma cidade tão atarefada, com tantos compromissos e acúmulos de trabalho, produzindo stress sem medidas. João era uma dessas pessoas, a síndrome da exaustão batendo às portas da alma e do coração. O ônibus ganha velocidade, passando por bairros, mercadinhos, bares, escolas, casas. João apenas observava em silêncio, parecia o único a notar o que estava do lado de fora da janela do ônibus. Era confortável para ele se desligar um pouco, deixar a mente e os olhos no automático.

Finalmente, chegou onde queria.

Desceu no último ponto antes do ônibus entrar no terminal Santo Antônio.

Subindo, atravessou em frente as casas Bahia, seguindo pela esquerda, entrou pelo calçadão das lojas, extremamente movimentada por sinal, como sempre é todos os dias. Não era somente as lojas, de uns tempos para cá, vendedores ambulantes espalharam suas mercadorias em mesas ou no chão. Encontrava-se de tudo, porém, a única coisa que João desejava não estava em nenhuma das lojas ou desses vendedores, João gostava de livros, leitor apaixonado, estava sempre com um livro nas mãos. O único lugar dentro daquele quadrante onde se podia se esbaldar em livros era na sebo, localizada um pouco mais acima, próxima ao banco do Bradesco. Esse era o destino de João quando estava nesses dias caóticos. Ele passava a manhã inteira dentro da loja, entre um corredor e outro, observando cada livro. Se pudesse levaria todos, mas, o pouco dinheiro, contadinho, daria apenas para um livro naquela manhã.

Quando finalmente chegou ao sebo, o relógio da catedral marcava oito horas em ponto. A loja estava abrindo naquele momento. O dono já conhecendo João de longas datas, sabendo de seu costume, não se importava de o cliente ficar de corredor em corredor a manhã toda. Às vezes, pegava algum título que lhe interessava, sentava em algum banquinho por ali e ficava lendo por muito tempo. Era difícil para ele escolher um livro apenas. Sua lista de desejo já era grande o suficiente para ocupá-lo o dia inteiro se fosse preciso, quando se deparava com as pilhas de livros, as prateleiras lotadas, era como se voltasse a ser criança dentro de uma loja de brinquedos. A esposa e os colegas achavam maluquice esse seu costume, contudo, sabiam que era a única coisa que lhe trazia paz e tranquilidade, era o seu refúgio.

João cumprimenta o dono da loja com um aceno discreto de cabeça, sorrisos ainda mais discretos para a funcionária que estava no caixa.

O primeiro corredor era onde mais ele demorava. Os livros nacionais, clássicos, contemporâneos, romances, crônicas, contos, poesia. Livros pequenos, outros calhamaços. João tinha uma queda por livros enormes. Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro eram os seus escritores preferidos, já havia lido todos os seus títulos. O segundo corredor era dos livros internacionais, também ocupando boa parte do tempo de João.

A manhã voou rápido, João perambulando entre um corredor e outro ainda não havia escolhido o seu livro. O relógio na parede da loja marcava dez para uma da tarde. A barriga começou a roncar, João pensou em sair para comer alguma coisa e retornar. Abandonou a ideia rapidamente. Um livro chamou-lhe a atenção. Era um calhamaço na verdade, "O homem sem qualidades de Robert Mussil" , se caso ele comprasse outro livro menor, sobraria dinheiro para um lanche rápido. Escolheu o calhamaço, voltaria para casa mais cedo do que de costume, com fome, porém, satisfeito com o exemplar debaixo dos braços. O caminho de retorno para casa foi ainda mais rápido, os olhos grudados nas páginas abertas do romance quase o fez perder o ônibus.

A mulher não se espantou com o marido chegando tão cedo, comeu rapidamente sem falar muito, o sorriso no rosto era o diagnóstico favorável. As páginas abertas eram o psiquiatra perfeito, a única terapia que realmente o ajudava a driblar o Burnout.

Tiago Macedo Pena
Enviado por Tiago Macedo Pena em 13/09/2024
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