Cada um constrói o futuro que imagina para si
Luísa é uma menina que ama desenhar, criar universos e passar tudo para o papel, e sempre mostrou talento para isso, conforme foi crescendo, Luísa, que morava em favela na zona norte do Rio, passou a materializar os seus desenhos, ela aproveitava que seu pai era catador de materiais reciclados, e utilizava o que podia em suas obras. Construía casas, móveis, cenários grandes, pequenos, modestos, elaborados, tudo com o que tinha a mão e a partir de seus desenhos.
Luísa foi ficando boa, e já estava se espalhando pelos arredores. Foi crescendo, e se aprimorando tanto em sua arte, quanto nos estudos, sabia que somente ali poderia conquistar um futuro melhor para si. Luísa infelizmente, ainda não conseguia grandes retornos com os bicos que fazia montando festas e cenários para os eventos de sua região, mas ela sabia que esse era o seu caminho, só não sabia como segui-lo.
Até que Luísa descobriu um curso gratuito de uma grande produtora que ensinava técnicas teatrais, entre elas, cenografia, e viu ali uma chance de crescer no que sabia que era sua vocação, e quem sabe, abrir futuras oportunidades. A carga horária era pesada, o curso era longe, mas Luísa decidiu não olhar para nada disso, apenas em aprender sobre o que amava com grandes profissionais.
No curso, Luísa se encontrou, não só no que aprendia na prática, mas por meio das vivências de quem também estava ali, e principalmente, os profissionais que dividiam seu conhecimento com os alunos. A vida de Luísa era correr atrás de trabalho, às vezes conseguia alguns freelas, mas nada concreto, estudar para o vestibular e ir para o curso três vezes por semana. Ficava cansada, quase não parava em casa, e seus pais já estavam preocupados.
- Minha filha, por que você chegou tão tarde?
Perguntou o pai de Luísa após a filha chegar de uma aula
- O metrô demorou demais, pai. Eu ainda fiquei conversando uns minutos depois da aula com a professora, ela quis me passar uma dicas sobre um programa para desenho 3D.
- Luísa, você tem certeza que quer continuar nesse curso? Você mal para em casa, minha filha, não tá comendo direito, só anda cansada, não tá conseguindo se dedicar para o vestibular, eu e sua mãe ficamos preocupados com você.
- Preocupados por que eu estou aprendendo algo que eu amo, que eu sempre quis e nunca tive oportunidade? Olha, eu sei que pareço cansada, e estou mesmo, mal paro em casa, mas eu preciso aproveitar as oportunidades que aparecem, agarrar com unhas e dentes, entende? Vocês sabem muito bem que isso é raro, praticamente impossível pra pessoas que vem de onde viemos.
- Construir cenário, Luísa? Negócio de teatro? Você acha mesmo que isso vai dar em alguma coisa?
- Não faço ideia, mas se eu não tentar, pai, eu nunca vou saber se vou conseguir. Além do que, mesmo se não der em absolutamente nada, tudo o que aprendi e conheci durante todo esse tempo vão ficar comigo pra sempre. Não é a mãe que sempre diz que o conhecimento é a única coisa que nunca podem tirar da gente?
- É, ela diz isso, mas pra mim você só tá gastando o seu pouco dinheiro indo para esse curso toda semana. Ao menos se tivesse alguma oportunidade concreta, mas nem isso tem.
- É, realmente, não tem nada concreto, assim como absolutamente todas as coisas nessa vida. A gente nunca sabe se as coisas que fazemos vão dar certo, se a gente vai ter algum retorno, mas é isso que é o sonho né, pai? A gente buscar por algo que faz nosso coração bater mais forte sem ter a menor ideia se vai dar certo, porque a gente precisa ter certeza que está fazendo todo o nosso possível para que ele se torne real, mesmo se não der, a gente pelo menos sabe que tentou, cai, limpa os joelhos e tenta de novo e de novo. O sonho é a única coisa que ninguém pode tirar da gente, é que nos move.
- Mas, Luísa, olha só...
- Não, pai, me desculpe, mas acho que me entendeu, o senhor não vai me fazer desistir do que eu acredito e muito menos impedir de tentar o meu possível, que eu sei que não é muito, mas dou meu máximo. Eu sei que o senhor quer o melhor para mim e fica preocupado, mas tenha certeza que eu tomo cuidado, quando eu tiver sei lá, numa grande premiação de teatro, quando eu tiver um cenário meu indicado, a gente vai lembrar dessa conversa, o senhor vai me dar um abraço, morrendo de orgulho e me agradecer por eu não ter te escutado hoje.
- Admiro muito a sua força de vontade, minha filha, saiba disso.
- Eu não tenho outra opção, pai, a não ser tentar. Boa noite, sua benção.
- Boa noite, minha filha, que Deus te abençoe.
Luísa era uma alunas mais interessadas e aplicadas no curso, e já havia criado certo vínculo com sua professora
- Eu notei que hoje você estava mais cabisbaixa na aula, aconteceu alguma coisa?
Perguntou Marília
- É que tive uma conversa com meu pai, que me deixou meio pensativa, sabe? Como eu tenho andado muito cansada, ele diz que eu tô gastando minhas energias e o pouco dinheiro que eu tenho vindo pra cá, que isso é desperdício de tempo, porque a gente não tem nada certo, não sabe se isso vai dar alguma coisa concreta, e de alguma forma, ele não está de todo errado.
- Olha, eu venho de uma família de arquitetos, e quando eu decidi trabalhar com teatro, todo mundo me achou maluca, pior ainda que quando eu comecei, eu trabalhava de graça ou ganhando quase nada. Enquanto meus irmãos estavam super bem sucedidos, eu ainda tava quase pagando pra trabalhar num espetáculo com orçamento ridículo, em que quase sempre tinha mais gente no palco do que na plateia, e eu amava, loucura né? Nunca me vi fazendo outra coisa, e hoje, mesmo com mais de vinte anos de carreira, ainda sou completamente apaixonada por teatro do mesmo jeito que era nesse espetáculo que paguei pra trabalhar. E você sabe por que? Por que é o teatro que sempre fez meu olho brilhar, quando eu recebo um projeto, imagino as referências, materiais, conceitos e quando ele começa a se materializar, é uma sensação única, inexplicável, e faz absolutamente tudo valer a pena. E eu vejo esse mesmo brilho no teu olha, sabia?
- Sério?
- Uhun. Vou te falar uma coisa, quando você faz teatro, realmente as pessoas vão pensar que você tem uns parafusos a menos, e talvez tenha mesmo, mas teatro não é escolha, eu se fosse escolher, seria arquiteta ganhando rios de dinheiro como meus irmãos, teatro é vocação. A gente não consegue se ver fazendo outra coisa da vida, ou melhor, não se vê sendo feliz em outro caminho. Melhor ou pior né? Depende do ponto de vista.
- É, eu acho que meus pais devem pensar que eu devo ter uns parafusos a menos mesmo.
- Então talvez o teatro seja mesmo seu caminho, pensa nisso.
O tempo vai passando, Luísa vai aprendendo cada vez mais, fazendo novos contatos, conhecendo outros universos, saindo de sua bolha, e, depois de muito estudo e noites sem dormir, consegue uma vaga para uma grande faculdade pública no curso de cenografia e indumentária e percebe que esse era o seu caminho desde sempre.
Alguns anos se passam, Luísa começa sua carreira na cenografia em espetáculos menores, vai ganhando experiência, currículo, começa a trabalhar em grandes produções, musicais e seu nome vai ganhando peso no mercado.
Até que um cenário assinado por ela é indicado em uma grande premiação teatral, o que para Luísa, já era um sonho realizado.
No dia da cerimônia, Luísa encontra Marília, que também havia sido indicada.
- Eu sempre soube que um dia te encontraria aqui, que bom que você não desistiu.
- Obrigada, mesmo. Foi muito difícil, por muitos momentos eu pensei em jogar tudo para o alto, mas eu sempre lembrei das suas palavras e tudo o que aprendi com você. Isso sempre me estimulava a continuar tentando, e olha onde eu cheguei!
- E isso só o começo, eu tenho certeza! Seu caminho ainda é longo, orgulho demais de você!
- Não vai me fazer chora né, Marília, pelo amor de Deus!
- Nada de choro, hoje é só alegria! Vamos logo que a cerimônia já vai começar.
Luísa ganha o prêmio de melhor cenografia, e após a cerimônia, encontra e abraça seus pais.
- Vocês viram? Eu ganhei! Quem diria que alguém que construía cenários com papelão reciclado no quintal de casa ia ganhar um prêmio de melhor cenário?
- Eu sempre soube que você ia longe, minha filha. Você sempre teve luz, estamos muito orgulhos de você. Não tenho nem palavras pra tanta emoção hoje!
- Ô, mãe, obrigada sempre estar do meu lado, sem vocês eu não teria chegado a lugar algum.
Quando abraça seu pai, Luísa fala
- O senhor lembra daquela nossa conversa?
- Lembro, lembro sim. Que bom que você não me ouviu, e sim sua vocação. E tá tudo acontecendo exatamente do jeito que você disse, parece até que você previu o futuro.
- Não é isso não, é que eu acho que cada um constrói o futuro que almeja para si, e esses anos todos eu, com muita luta e suor, fui construindo o que sempre sonhei para mim, feliz demais que agora os meus sonhos estão se materializando.
- E de materializar sonhos você entende né, minha filha?
- É o que senhor disse, essa sempre foi minha vocação.