CACHAÇA: TRABALHO, PRAZER E TEMPO

Sol quente, meio dia, terça-feira

— Calor da porra!

Trabalho árduo, furando poço, dando pedra, muito ainda pro dia acabar. Hora do almoço, P.F. na dona Maria: dez merréis o prato. Barato, não é. Na conta do patrão, — Arre! Não tem importância.

— Desce uma cana pra esfriar essa lua ! Era para dar coragem. — Que diabéisso?! Garrafa velha empoeirada, esquecida por muito tempo no barracão atrás do bar. Amarelada, na rolha.

— Ô seu Zé, isso é coisa de meu pai. Agora que ele se foi tô arrumando a bagunça. Encontrei de manhã, Tava perdida. Tô abrindo a primeira agora, toma um gole?

— Num vai me matar não, vai? Tenho um poço pra cavar...

Posta no copo, pingado pro santo, numa talagada só, virou os olhos. Delicia de cana, fruto da terra, suave, perfumada. Por um instante, sensação gostosa: abraço de mãe, brincadeira de pique, forró em terreiro descalço.

— Deus do Céu! Assim tu me mata! Desce outra, vá!

— Sabia que tu iria gostar...

— E me diga: foi d’onde que teu pai trouxe essa desgraça?

— Mais respeito seu Zé se não, eu juro, guardo a garrafa.

Um cão mansinho.

— faz isso não, né por mal...

— Essa daqui é herança de meu tio, pai não vendeu nenhuma.

Tomou outra, a derradeira. Viu estrelas, viajou no tempo... Devaneios sobre um saci preso na garrafa. — Mas será d’onde que veio isso?

...

***

Do outro lado da garrafa, esquecida por quinze anos, a labuta: suor e sangue de mestre Silvino e sua mula pampa. História guardada à rolha, coberta de poeira e tempo. Em seu alambique: moenda e barracão, sertão mineiro. Tempo de seca, invernagem, palhoça descolorindo o vale, tempo de produzir mel. À cata de lenha, corte da cana, reparar a fornalha, ajustes na panela, fogo. Logo começa a pingar. Dedicação e ciência matuta.

Mestre Silvino nunca acompanhado, também não anda só. Segue seu trabalho mudo, caramiolando, perdido nos seus assuntos. Grunhindo repiques imperativos que sua companheira entende bem: — Pare! Ande! Puxe! Por dentro o velho é uma moenda remoendo conflitos não resolvidos. Coisas que passaram, não existem mais, que ainda ecoam, tomam vida. Pensa, procura entender, mas não para de trabalhar. É o que o motiva.

A mula não quer girar moenda, não quer buscar lenha, não entende para que tanta cana, não sabe o que é cachaça. Trabalha por pura obediência, pela certeza que no fim do dia estará à devorar o bagaço doce, regalo na seca, sobra de engenho, o que tem.

No alambique tudo se transforma, toma outro sentido, ganha outro nome: cana espreme, sai bagaço, vira garapa, daí fermenta e vira mocho, mocho ferve, esfria, pinga e vira cana de novo, processo dolorido e lento. Sacrifício : tem sua cabeça decepada, o coração extirpado, o rabo cortado fora. O que resta é o motivo de tudo. A cachaça. Posta em uma dorna de umburana, deixada esquecida no tempo, até a chegada da primavera com sua chuva esverdeando o pasto. Tempo de pôr na garrafa, preparar a mula, encilhar charrete, descer o vale, encontrar seu irmão, dono da venda.

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 06/09/2024
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