Rediviva 1 - Embaraço

Sou uma mulher como tantas outras. Reencarnei no século vinte e um, num período crítico da vida de todas as mulheres, pois tenho quarenta e seis anos, feitos em 22 de fevereiro de 1918, quando tinha já transitado em julgado o meu divórcio.

Convivo com o coleante rio Leça na Casa da Pena, Lavatães, onde habito, na União de Freguesias de Carreira e Refojos de Riba de Ave, antiga circunscrição de S. Cristóvão de Refojos, Santo Tirso.

O cuco do corredor dera seis horas.

Nesta bela alvorada de julho, vejo, da janela do meu quarto, aberta sobre a pérgula, o sol a desdobrar-se na mancha extensa de pinheiros-bravos do cerro do Carneiro e pressinto, pelo chilreio indeciso da pequenada plumosa, que os pássaros adultos ainda dormem nas ramarias das carvalheiras.

Nestas nótulas singelas que ouso depositar no regaço do leitor, não usarei a ortografia que aprendi na escola, cheia de “ph”, ípsilones, “rh” e “th”. Pedi a uma senhora professora que me tirasse os grilhões da escravatura da Cartilha Maternal oitocentista e escreverei pelo Tratado Internacional Ortográfico de 1990, para simplificar. Não me mal-entendam os doutos correspondentes deste jornal que, como vejo, escrevem – e bem! – pelas “bases da convenção luso-brasileira de 1945”. E escrevem tal, porque sim!

Madruguei-me, pois, bem-disposta, agradada pelo conforto da moda deste século em que me encontro por empréstimo. A mulher atual não voltou à liberdade de movimento das matronas romanas – que eram escravizadas pelos homens, todavia com os corpos esculpidos na amplitude libertária de togas e túnicas – mas desembaraçara-se dos espartilhos de varas de aço do meu tempo, que nos enrugavam a pele, torturavam a carne e embargavam a sedução.

Deixei sair de casa o último dos meus hospedeiros – que a galga Loanda não acompanhou; ao pequeno ambão da sala de estar, socorro-me de uma estranha caneta, cuja tinta parece não ter fim, não borrata à medida que se escreve e tem gravado a letras verdes “Cardoso da Saudade 50 Aniversário 1948-1998”, parecendo fazer anúncio a qualquer coisa, e rabisco no meu diário:

Hoje, vou a Santo Tirso, caro Diário! Estou bastante entusiasmada com esta visita à terra onde nasci e balbuciei as primeiras palavras. Lavatães é um lugar tranquilo, que deveria ser o ambiente mais propício à bonomia de espírito, mas na noite transata um galo da capoeira do vizinho cantou a desoras. Vou sugerir ao meu parente Amadeu Gonçalo que recomende uma solução muito simples para acabar com este desconforto noturno: basta colocar uma tábua sobre o poleiro do inconveniente francês que ele, ao levantar-se, bate-lhe com a crista e, à terceira teimosia, recuará para o seu lugar silenciosamente.

Sob o bafo morno e são da brisa matutina, com as pálpebras caídas, suspendi a escrita porque os pensamentos fizeram com que duas lágrimas me caíssem sobre o papel.

Amarílis

fabricia.amarilis@gmail.com

ANTONIO JORGE
Enviado por ANTONIO JORGE em 05/09/2024
Reeditado em 27/09/2024
Código do texto: T8144927
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