FORA OU DENTRO DE MIM

O dia estava esplêndido, cá dentro, através da janela escancarada, guarnecida por grades de ferro pintadas de branco, obra de serralheiro competente, a luz da manhã invadia o quarto onde Augusto estava, vindo reproduzir aos seus pés a imagem de uma grelha incandescente, a qual de tempos em tempos a passagem de nuvens diante do sol fazia parecer que esfriava, que já não mais queimava com tanta violência. Fazia uma bela e ensolarada manhã de domingo. Augusto, sentado a uma cadeira, brincava com a sombra das grades projetada no piso; quando ela parecia enfraquecer, ele punha os pés descalços sobre ela; quando ela voltava a ficar forte, ele recolhia-os rapidamente, para não deixar que fossem tocados pelos raios do sol. De quando em quando ele erguia a vista para além da janela e via gente vindo e indo, entrando e saindo de estabelecimentos e automóveis, vivendo mais um dia; e que belo dia fazia então.

Da paisagem que se via por entre as grades da janela do seu quarto Augusto voltava os olhos ansiosamente para o relógio que trazia no pulso direito a ver se já eram horas de o seu amigo Vicente chegar. É que este vinha sempre à sua casa aos domingos, jogar conversa fora, saber das suas leituras e opiniões novas e também do seu bem-estar. Augusto apreciava muito a amizade e companhia de Vicente, embora não entendesse bem com certos hábitos e ideias que ele tinha. Na verdade, Augusto reprovava-os decididamente no seu íntimo, e se não comunicava tais sentimentos a Vicente, era porque não queria desgostá-lo. Para manter a paz e a harmonia, Augusto gostava calar muita vez o que realmente lhe ia dentro no coração.

O seu relógio marcava quase 10h quando Vicente, atravessando a rua, veio dar no portão da sua casa. Ele lhe foi aberto pelo porteiro seu Ronaldo, um senhor bastante simpático; em seguida Vicente entrou na casa. Augusto alegremente correra a buscar seus sapatos ao armário, calçou-os e se preparou para descer a encontrar o seu querido amigo, mas não foi necessário, pois Vicente subiu ao seu quarto, instantaneamente.

--- Foi mainha quem te abriu a porta, Vicente? Perguntou ele com um sorriso jovial enquanto estendia a mão direita ao seu visitante.

--- Foi sim, mano! Disse-lhe Vicente, apertando-lhe a mão e o chegando para si, para abraçá-lo.

--- Sente! Sente! Eu ia descer, mas você veio até aqui, então, a gente fica aqui mesmo, enquanto mainha prepara o almoço. Você fica para almoçar, não é? Hein?

--- Sim, talvez... é que mais tarde eu tenho um pequeno compromisso, daí eu não sei se vai dar tempo de almoçar com você; de qualquer forma, se hoje não der para almoçarmos juntos, na próxima semana a gente faz isso.

--- Tá, tá certo; você sempre tem compromissos no domingo... disse Augusto, emprestando à sua voz ares de insatisfação.

--- É sério, mano! Eu volto depois! Prometeu energicamente Vicente, procurando desviar Augusto de algum sentimento menos feliz.

--- Tá bom. E aí, o que você anda lendo? Eu acabei de ler A Morte de Ivan Ilitch! Que livro, mano! Tolstói é um gigante! Esse foi um dos melhores livros que li na minha vida!

--- Nossa! Então acho que você irá gostar de ler Crime e Castigo; bem, é só a minha opinião, mas acho que Dostoievski foi maior até mesmo que o nosso Machado de Assis. Não tanto pelo estilo, mas pela riqueza da descrição dos estados de espírito, da psicologia humana em geral. Augusto escutava seu amigo com entusiasmo; essas conversas lhe enchiam de êxtase.

--- Uhn, não sei, eu inventei de começar a ler Os Irmãos Karamazov e não passei do primeiro capítulo. Livro grande da gota! Para ler um livro desses o cara tem que ter muito tempo sobrando... Deus me livre.

--- Oxe, Augusto, mas agora tempo livre você tem de sobra. Vicente só se deu conta do inteiro alcance dessas suas palavras quando já as havia dito e não era mais possível fazê-las voltar atrás. Então, quase automaticamente ele esboçou um sorriso amarelo e ficou aguardando ver qual seria a reação do seu amigo.

Augusto à princípio pareceu não ter atentado para essas suas palavras, pois até disse, com certa bonomia, que faria um esforço maior para no futuro encarar a leitura de livros mais longos e difíceis. Todavia, notava-se que de algum modo as suas atenções agora não estavam inteiras com Vicente ali naquele quarto, que parte delas tinha conseguido escapar dali por entre as brechas das grades, para se perderem pelo jardim, pelas ruas próximas, pelo mundo afora. Bateu-se à porta do quarto e Vicente mandou que entrasse. Augusto permanecia olhando pela janela, em silêncio. Era D. Dulce.

--- Augusto, é hora de almoçar, meu filho! Disse-lhe ela com carinho. Augusto voltou-se para ela, mas sem falar-lhe. Agora ele já não tinha o ar sombrio de há pouco, parecia mesmo que nenhuma perturbação interior lhe havia abalado.

Vicente trocou algumas palavrinhas com D. Dulce e depois que ela os deixou a sós outra vez, procurou reatar a conversa com o seu amigo.

--- E então, mano, você não vai comer? Augusto olhava agora fixamente para seu amigo. Ora franzia o cenho, ora abria a boca como para dizer alguma palavra, para logo fechá-la e voltar a estar imóvel; até que se levantou, pegou a cadeira em que estava sentado e veio se sentar ao pé de Vicente, o qual ficou um tanto apreensivo, sem saber o que viria a seguir.

--- Sabe, Vicente, --- disse-lhe calmamente, olhando para a janela além, --- viver a vida sem ter um propósito superior, viver como vivem as plantas ou os bichos brutos não é digno do homem. Quando eu trabalhava na padaria do seu Artur e tinha que acordar cedinho, pegar dois ônibus lotados, depois um metrô igualmente apinhado de gente como se fosse um carregamento de animais, eu ficava olhando a cara dos que estavam mais próximos de mim e pensando o que motivava essa gente a viver assim, um dia depois do outro, sem enlouquecer... eu chegava no trabalho e me lascava de tanto serviço; mal eu tinha tempo para comer, para ir no banheiro, porque seu Artur ficava falando que a gente fazia corpo-mole para o trabalho, ameaçando demitir a gente. Eu largava tarde da padaria e já ia direto para a faculdade; nem vou dizer que eu não conseguia estudar direito por causa do cansaço; mas lá estava eu todos os dias. Eu voltava para casa acabado; não conseguia nem ir tomar banho e mudar de roupa para dormir limpo, fresquinho. Depois veio a doença de mainha... Os olhos de Augusto ficaram então inundados, ele começou a abrir e fechar as mãos com força e a balançar as pernas convulsivamente, ao que Vicente prontamente o abraçou forte e pediu-lhe que ficasse calmo, pois tudo ia ficar bem, que ele não precisava se preocupar com nada. Então Augusto começou a voltar à tranquilidade e a falar. Mainha adoeceu Augusto, a gente não tinha ninguém para nos ajudar; daí eu comecei a chegar atrasado no trabalho, por causa dos serviços de casa que eu fazia para poupar mainha e acabei perdendo o emprego. Eu fiquei sem saber o que fazer. Não pude mais pagar a faculdade; passei meses procurando algum serviço perto de casa, para que desse para eu cuidar de mainha direito, mas nada aparecia, e ela cada vez pior, pior... a doença comendo ela viva, ela sofrendo; eu escutava ela gemendo de dor de madrugada; era eu que não estava mais aguentava aquilo tudo... Teve um dia que eu acordei com ela me chamando baixinho, fui até ela, Augusto, ela estava pálida, gelada, os olhos quase pra fora da cara, me olhando, me chamando para junto de si. Eu fui, Augusto, fui com medo, não vou mentir, mas fui, segurando o choro, com uma pedra atravessada na goela, mas fui até ela. Ah! Augusto, depois disso eu lembro que era como se eu tivesse caído da cama; sabe aquela sensação de quando a gente está quase dormindo e tem a sensação de que estava caindo? Pronto, foi essa a sensação que eu tive, mas abri os olhos, me apalpei e vi que eu estava na cama, na minha cama, e não lembro direito de ter saído do quarto de mainha e vindo para o meu quarto, se bem que esse meu quarto aqui é muito diferente agora, você não acha? É! É! É muito diferente mesmo... Augusto olhou em volta, procurando identificar melhor onde estava e reparou que diante de si o seu prato de almoço estava aqui e ali com uma ou outra mosca; ele então as enxotou e se voltou para o seu amigo... e quando ia continuar a falar, D. Dulce apareceu novamente no quarto, dessa vez acompanhada pelo Dr. Magalhães.

--- Bem, doutor, esse é o nosso paciente Augusto Vicente de Azevedo. Ele sofre de esquizofrenia, mas sendo corretamente medicado, ele é bastante bem comportado; ele é um bom rapaz. Não é, Augusto?

--- Sou sim, mainha! Respondeu Augusto Vicente metendo a primeira colher de comida fria e ensebada na boca, enquanto olhava pela janela o mundo lá fora.

Davi Felismino de Souza
Enviado por Davi Felismino de Souza em 03/09/2024
Código do texto: T8143440
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