Conversa ao Telefone
— oiêee...
— Ligando tão cedo, você não está no trabalho?
— Não. (longa pausa, com intuito de mudar o foco da conversa).
— Esse caderno antigo e a caneta-tinteiro... você não as usa?
— Não brinca. Você está no meu quarto?
— Aham!
— Se você escrever alguma coisa no meu caderno, eu te mato, entendeu?
— Ah, sim, claro. Não faria isso. Sei o quanto o seu braço é pesado. Já me bateu no ensino fundamental, esqueceu?
— Bons tempos aqueles. — Suspiro ao celular.
— Pera, não tem ninguém em casa, como entrou?
— Tem uma chave embaixo do vaso de plantas, Tuchê!
— Que papelão viu. Aproveite que está de pernas para o ar e organize meus livros em ordem alfabética. — Sorrio; ela desconversa.
— Que horas vai chegar?
— Só a noite. Vai esperar por mim na cama? Ela solta uma risada engraçada.
— Credo, que horror! — Responde aos risos.
Do nada, outra pausa... — Rompo o silêncio, dizendo que estou sozinha na sala dos professores e que minha aula só começará depois das 9h30. Dou o passo livre para ela falar, mas logo vem mais uma pausa, e só depois, sinto sua voz empertigar do outro lado da linha.
— Aconteceu de novo. — Brada a voz ao meu ouvido. Tento levar de forma brincalhona e digo ironicamente: — Só eu que acho estranho a atual ligar para a ex pedindo conselhos? — Imagino que ela tenha dado de ombros, sempre age assim em momentos como esse.
— Você é a pessoa mais designada para me ajudar, não acha?
Agora sou eu que dou de ombros e empertigo na cadeira, como se eu pudesse alcançá-la e trazê-la a realidade. Mas não o faço, deixo ela começar o fatídico monólogo. Ao fim da parte um, ela solta uma voz chorosa... — Só você me entende.
De fato, vê-la naquela situação me faz lembrar de mim mesma. Eu já estive na mesma posição. A diferença é que quando eu estava com ele, eu era a minha versão imatura. Hoje, percebo que a personalidade dele é calmante e até um pouco sexy, mas na época eu odiava que ele fosse daquele jeito.
— Amiga. — Digo em tom reconfortante, mas cirúrgico. Você só tem duas opções: Ou você o aceita como ele é, ou faz igual a mim. Sinto a respiração ofegante do outro lado.
— No relacionamento de vocês, em nenhum momento ele expôs o que sentia ou queria? — A pergunta atravessa a linha telefônica e me acerta em cheio, sem espaço para a fuga. Pigarreio um pouco, não gosto de falar sobre relacionamentos, principalmente os que não deram certo, mas não tenho como fugir dessa pergunta.
— Sim. Confirmo. Uma vez, apenas uma vez. E essa única vez, me deixou sem palavras, diferente de todas as outras vezes nas quais eu o questionei.
Suspirei no fim. Percebi que ativei o modo curioso dela e as perguntas se amontoaram como pilhas de papel amassado e mais uma vez eu me vi refletida nela. As palavras dançavam em minha mente. Eu queria guardá-las no esquecimento, assim como fiz por tanto tempo, mas infelizmente eu tive que dizer em voz alta.
— A única vez em que ele realmente expôs de fato o que sentia, sua voz reverberou um pedido de casamento. A intensidade do momento fez meu corpo enrijecer, minha cabeça girou e por isso decidi ali mesmo, estabelecer nosso fim. Como poderia me casar com alguém que nunca me disse um Eu te amo?
Mais uma pausa. Um tipo diferente de pausa. Não era os ciúmes falando no silêncio, era, na verdade, a curiosidade gritando em letras garrafais. Depois de tanto tempo, eu não queria admitir... na época em que namorávamos, eu queria viver o ápice, a loucura do amor. Queria a intensidade, ler todos os movimentos dele e entender até mesmo suas manias. Pasmem, ele não as tinha. Não era previsível e isso me frustrava. O clichê que eu esperava viver não veio, e eu era imatura demais para perceber que ele estava a anos-luz de distância. Eu não consegui entender o amor dele, e o enchia de perguntas cujas repostas eram escorregadias e me desapontava sempre que ele brincava comigo.
Tempos depois do nosso rompimento, ele me mandou um e-mail. No corpo do texto, ele explicou que um dos seus passatempos preferidos era quando eu mostrava meu lado criança e o enchia de porquês. Ele gostava de ver minha birra quando suas respostas eram falhas e sempre procurava fugir da rotina, para que eu o enchesse de perguntas.
Hoje eu percebo que, embora sua boca não falasse, seu corpo, seu olhar e suas ações demonstravam muito. Entretanto, eu era imatura demais para perceber tudo isso. Do nada, sou pega de surpresa pela pergunta que tanto reprimi:
— Você se arrepende de ter terminado com ele?
O peso dessa pergunta me deixa desconfortável. A resposta não mudará meu presente, muito menos minhas escolhas atuais. Mas eu a considero um tabu. Sou eu que agora deixa transparecer na pausa a minha inquietação. Embora não queira, sou obrigada a responder. Se há uma coisa que me perturba é o peso das nossas escolhas, porque as implicações delas nos acompanham.
— Não. — Respondo em seco.
— Não me arrependo, não disso. Me arrependo de ter sido tão imatura, de ter sido criança demais, me arrependo de não saber ler os sinais na época.
Ela suspira, demonstrando que sacou tudo. Agora entende que o silêncio dele não implica indiferença, isso faz parte da personalidade dele. O tipo de personalidade que me frustrou antes, hoje se tornou algo comum para mim. É tão envolvente estar com alguém que foge do comum e não age de forma previsível.
— Pizza no jantar? — Pergunta ela rompendo o estranho silêncio.
— Ah, sim! Amo pizza. — Gargalho com a quebra de expectativa.
— Combinado.
— Até a noite, então. Tch! — Ela me interrompe.
— Espera... Fico com a opção 1.
Ela sorri como se agradecesse a conversa rápida, mas intensa.
— Quero uma nordestina. — Digo de forma descontraída e desligo a chamada.