Metamorfose

Acordei, desliguei o alarme do celular, levantei de uma só vez como faço todas as manhãs. Fazia. Agora, como o inseto do livro metamorfose de Franz Kafka (1915), não consigo me mexer. Tento mais uma vez, devagar, primeiro o cotovelo se apoia, depois com um impulso das pernas fico em pé. Desisto no meio da ação e caio esparramada na cama. Eu sou um ser doído. Meu corpo dói e meu cérebro está sem energia suficiente para conectar as sinapses necessárias e enviar a ordem: mexa-se.

Deixo-me, sem opção, continuar deitada olhando para os defeitos da pintura do teto do meu quarto torcendo para alguém sentir a minha falta no café da manhã e vir conferir o que aconteceu. Preciso de um anti-inflamatório e um miorrelaxante para iniciar meu dia. Meus músculos judiados e revoltados se rebelaram e não querem trabalhar para colocar este ser em pé. E em pé é só o começo, preciso tomar uma ducha, abaixar para enxugar os pés, usar meus braços para abrir as gavetas e escolher uma roupa para vestir. Vestir! Tenho que tirar o pijama e colocar outra roupa. Não tinha ideia do número de músculos que são precisos para realizar esta simples tarefa de desvestir e vestir. Tomar café, andar até o carro, subir escadas do prédio do escritório, ficar sentada o dia todo. Não consigo me mexer. Ficarei por aqui até que seja encontrada, desvestida, vestida e alimentada.

Os problemas começaram quando saí com a Carol e ela apareceu linda, magra, com um vestidinho curto e apertadinho. Quis saber o motivo de tantas mudanças. Por que escutei a Carol? Ela me fez conhecer um carrasco, um ser humano sem o menor grau de empatia, caridade e piedade. Um algoz que atormenta minha vida desde o dia que o conheci. Primeiro ele me seduziu com a narrativa de uma nova vida, novos parâmetros, novas perspectivas. Os vídeos de tiktok e de publicidade se tornariam reais e estavam ao alcance das pessoas comuns. Era só sonhar e agir. Eu acreditei e esqueci de perguntar o que ele queria dizer com a palavra agir na realização do sonho. O básico, a fundamentação do discurso era a pergunta: o que eu preciso fazer?

Saí do encontro com meu torturador cheia de planos e com a certeza de teria tudo aquilo que eu quisesse. Olhava os vídeos de pessoas na praia, em piscinas, baladas com muita gente. Via toda essa gente que eram, agora eu tinha certeza, como eu. Só precisa querer e agir.

No nosso segundo encontro fui apresentada ao algoz dois. Pessoa simpática, todo sorriso, as suas palavras eram de motivação. Parecia muito com uns profissionais que sempre fizeram parte da minha vida em treinamentos de trabalho com mantras: você pode tudo é só querer, agir para transformar. Naquele encontro bloqueei meus conhecimentos gerais sobre a minha procura de milagres.

Pronto! Equipe formada. Partimos para a tão esperada ação.

No terceiro encontro recebi do algoz um a lista de tudo que eu deveria banir da minha nova vida e a lista do que seriam meus companheiros a partir deste dia e, detalhe, para a vida toda. Ele também me indicou um terceiro algoz que, depois de conhecê-lo melhor, resolvi chama-lo maquiador de tortura. Ele me ajuda a suportar os infortúnios e  me convence de que estou fazendo o certo e o melhor.

E cá estou eu. Em uma linda manhã ensolarada, tomada por um ataque de fraqueza, sem conseguir movimentar, com muita fome e sede, totalmente submissa e torcendo para que alguém venha me salvar. Em três meses de ação, como me disseram no início, atingi vinte por cento do meu objetivo e ontem tive a revelação pelos algozes um e dois que este processo é para a vida toda. Eu tenho que investir em uma mudança radical de estilo de vida se quiser ter sucesso.

Mudança? Como assim? Adorar sentir um vazio pior que o existencial na barriga dia e noite? Renunciar para sempre dos meus companheiros de solidão, meus companheiros de balada e celebração? Como poderei viver uma vida sem doces e sorvetes? Como viverei sendo torturada três vezes por semana pelo algoz dois? Levantando e descendo pesos cada vez maiores, agachando, correndo, fazendo flexões, supino, prancha e todas as  torturas que, segundo o algoz dois, me farão atingir meus objetivos?

Ontem tive a revelação: nada acabará, não tem fim. Se eu quiser ser como a Carol e os vídeos do tiktok , terei a dieta e treinos como companheiros de vida! E olha que  ainda estou em tratamento. Preciso perder mais dez quilos !

Virei inseto, ameba, verme, qualquer coisa que não seja humana. Não sei como continuar vivendo. Como ficar linda e magra vivendo no limbo em que estou? Não posso comer e estou perdendo a autonomia até para ir ao banheiro preciso de ajuda. As dores pós treinos me deixam inválida. Voltar a não agir seria o atalho para a felicidade. Não tenho mais esta opção. O maquiador de tortura me ajudou a  aflorar no meu cérebro a minha vontade de mudar, o quanto eu não gosto de ser como sou, as razões de estar atuando compulsivamente para ser o que eu não quero ser. Aconteceu e tenho que seguir. Levantar e fazer o que é preciso. À noite estarei bem e com a sensação de ser o que eu quero ser. O inseto se foi, levanto da cama e vou mancando até o banheiro. Preciso tomar um banho e me arrumar para um dia de trabalho e mais torturas.

Márcia Cris Almeida

28/08/2024