Na minha janela
“Na minha janela”
Meia noite. Acordo. Ainda zonzo e moído. A cirurgia foi ontem. Passei o dia tonto. Efeito de medicamentos. Detesto tomar remédios. Sinto meu corpo cheio de drogas. Não consigo levantar para urinar. Estou dormindo de lado. Nunca fiz isso. Dormir de lado. Gosto de bruços, mas dizem que é ruim para coluna. Hérnia de disco. Nucleoplastia. Que peso carrego eu para merecer isso?
Carros passando. Uns poucos. Quando é moto a aceleração é maior. Camionete a diesel tem um ronco de trator. Comprei um Land Rover e ainda não o dirigi. Ninguém buzina a esta hora. Mas um apito vem de longe. Trinado. É o vigia. Eu nunca vi a cara dele, mas confio. Lá longe a luz mortiça do vapor de sódio revela uma sombra. Não sei quem é. Uma mulher? Olhando-me? Quantas já passaram e viram essa luz acesa? Ou este homem lendo? Ou simplesmente fitando o nada? Devo ser um mistério para os passantes.
Já são umas quatro da madrugada. O cheiro é misto de promessas e segredos. Revelo-os todos a minha varanda. Não há testemunhas. Nem ouvintes. Assusto-me com o ranger do portão eletrônico. Vizinho adolescente chegando da night. Não sabia que os sons etílicos eram tão altos. Dá para perceber o nível da bebedeira. Sorrio conivente. Eu já fui assim. Minha mulher dá uma mexida ao lado. Eu a toco de leve nas costas. Há algo mais bonito do que os cabelos deslizando pelas espáduas em uma fêmea que dorme? Nem que eu pudesse faria algo. O sono, nesse horário, santifica.
São seis. Galo canta. Sim senhor, um trovador mora ao lado, no quintal. Chego a ouvir o rufar triplo de suas asas. Um francês, um hindu, um japonês, me chamando para vida. Coq gaulois, Skanda, Amaterasu. É devagar, devagarinho. Sambinha do meu despertar. Vou ao vaso. Minha barba está cada vez mais branca. Lembro-me do poema de Cecília, “Retrato”. Eu não tinha este rosto... Leio O Popular. Fraco. Salvo alguns amigos que escrevem nele. O resto é muito pobre. Também, fui morar em Goiânia...
Café na cama. Ovos, manteiga de amendoim. Vitamina de banana. Dizem que vou engordar. Mas a nutricionista reitera de que devo manter a máquina abastecida, sob pena de perder massa muscular. Pobre de mim que apenas desejo ficar em pé, sem dormências, choques ou dor. O movimento lá fora aumenta. Peço para abrir mais um pouco a porta. Meu contato com o mundo.
O primeiro visitante é belíssimo. Verde-metálico. Veloz. Voraz. Territorial e ciumento. Meu filho poderia pensar que é um desses automóveis “tuning” superequipados, que até para dar ré acendem uma luzinha diferente. Não, é um beija-flor. Está fazendo um ninho. Como eu, demorou vinte minutos para “pegar”. Meus batimentos cardíacos geralmente lentos aceleram com o bater de asas do colibri. Sai de sessenta para oitenta. Esboço um sorriso. Sinto poesia no ar. Bom dia.
Estou lendo Hilda Hist. Desaconselhável para convalescentes. Imagino um poema de onças que enche minhas idéias. Um texto também. Mal consigo sentar-me no micro. Pena. Mas então, com a nesga de luz que surge na fresta da varanda ela deita-se. Úrsula. Minha alemãzinha tão amada. Refestelada assim indiscreta. Vigia o sol. Aguarda as rolinhas. Discorro que há meses ela tenta abocanhar uma. Não consegue. No meu parco cachorrês, descubro que ela levanta as asas e foge. Sempre. É uma Columbina talpocoti. Rolinha caldo-de-feijão.
Meus companheiros de cela são livres. Eles voam. Margareth também. Vai treinar. Irá correr a São Silvestre daqui a dias. Fico só. As crianças, cada qual foi na casa de um coleguinha. Mamona rachando. Suo. E no silêncio do meio-dia, só o Bem-te-vi canta. Seu ninho é aqui ao lado. No transformador. Sempre exibido. Desafia alguém a macular seu lar. Coisa que ele faz bem contra os outros pássaros. Até já espantou um gavião...
Vou almoçar. Coloco uma bermuda legal e uma camisa tri-fit. Faz calor. Proibido o vinho. Proibido sexo. Cinema. Andar de moto. Nadar. Operar. Trabalhar. Tudo que é bom. Resolvo minhas carências na água gelada. Ao beber e ao banhar-me. Telefonemas. Atendo animado. Falar, eu consigo. E pensar também. Pacientes perguntando. Sinto-me útil.
De volta para cama. Cochilo tradicional. Ventilador secular ligado. Lá do alto do prédio vizinho, o urubu me fita. Tenho certeza. Apesar da distância. Ele me vê. Não sou carniça. Massa em repouso. Passo perfume. Armani. Aposto que seu ninho é ali. Nesta época em Goiânia as térmicas são freqüentes. Ele ascende. Seu pescoço pelado e preto de escarafunchar bicho podre. Será que ele lê meus pensamentos?
Vou para a fisioterapia. Finjo não perceber o interesse das funcionárias em minhas pernas. Envaideço. Mas não tenho vontade e nem jeito para gracinhas. Deito-me. Pouco esperei. Fui bem atendido. Aproveito para ler a Folha de São Paulo. Isso é que é jornal. Um dia ainda escrevo nele.
Totalmente dependente, a esposa me busca e trás. Passo na banquinha de revistas. Tenho conta. Batman, Mágico Vento, Júlia, Demolidor e outros amigos me esperam. Levo todos. Tenho tempo. Muito, aliás. Eu que já não dormia com inúmeras atividades que cumpro, imaginem agora. Estou louco para deitar novamente e ver quem passa por aqui. Aguardo visitas inesperadas. Humanas e felinas. Repouso ativo.
Ah, as garças. Estão indo para o clube Jaó. O bico é preto e os pés amarelos. Peguei o binóculo que foi do meu pai. São das pequenas. Mas juro que vi umas poucas grandonas. Essas têm egretas. Pluminhas que ficam arrepiadas no acasalamento. Deve ser época. A Luceni me chama para o lanche. Empregada sensacional. Nem preciso pedir, ela já sabe. Pão, suco e uma fruta. Maçã. Já que bananas e laranjas eu devoro no almoço.
Meu deslocamento melhora com os dias. As observações também. Descobri alguns pardais. Dizem que é uma peste, duvido. Vieram de tempos imemoriais do Oriente Médio. Já os vi no Alaska e na ponta do Chile. A que passa não apresenta o babete negro. Que nome! Babete. Legal. Ela é pardoca, ou pardaloca, sei lá. Outra alcunha deveras nobre. Agora são poucos. Quando menino saboreava uma revoada que cobria o céu da Rua 10, no caminho da casa da minha avó. Eles sentavam nas mongubas e despejavam seus férteis dejetos na cabeça dos transeuntes. Eu adorava essa cena. Pardalzinho cagando! Hoje é nome de infecto sinalizador de multas do SMT. A merda virou outra.
Já vai escurecer. Chove. Natal sempre chove. Acho que já disse isso antes, mas é bom frisar. Hoje irei ver minha mãe. Ótimo. Só mãe para entender o que estou passando. Degluto livros, gibis, poemas, jornais e até classificados. Resolvo arrumar papéis. Como todo escritor, coleciono papeizinhos. Difícil à rendição de separar-me deles. Choro um pouquinho. São lembranças. Daqui a pouco a revoada dos periquitos. Como são muitos, no começo achei que eram os mesmos. Dancei. São três espécies diversas.
A turma da manhã é colegial, os tuins. Aproveitam da proximidade das paineiras da Praça do Sol e da magnífica árvore que fica na curva da Maternidade de Maio. Eles comem suas sementes. Sua barriga é verde e amarela. Pequeninos. O pessoal da tarde é o mais barulhento. Algazarra em vôo. Adolescentes. Periquitos verdes. Também adoradores das barrigudas, mas avançam nas palmeiras e suinãs. Olhando por baixo, suas asas são meio azul-violetas. Cor de olho de gente bonita. E são bem maiores. Por último, ouço e vejo –às vezes misturados com os verdes- o periquitão da asa amarela. Esse grupo é mais raro. Mas os considero mais bonitos. Desconfio que fizeram um ninho nas telhas dos vizinhos do fundo. São os adultos, gente grande. Lá no Peru são ainda maiores. Divirto-me agora ao identificá-los pelos sons, ventre e cor de asas. Psitacídeos são uma alegria.
Anoitece. Jantar está na mesa. Sou old fashioned, janto. Abro portas para as damas. Faço –ocasionalmente- a barba com navalha. Peço licença, faz favor e dou bom dia. Talvez nem pertença mais a este mundo deseducado e com pressa. A cada deitar eu coloco três discos para tocar. Agora é Duke Ellington depois Chico Buarque (ah, o último livro dele também está na lista) e para fechar, os cubanos Buena Vista. Ferrer é esplêndido.
Mais um dia se passou. Conto histórias para os filhos, do último livro que li. Best seller grudento e bem escrito. O Código da Vinci. Mostro as figuras e os anagramas. A companheira é a primeira a dormir. O filho vem depois. Passo as mãos em seu cabelo sedoso. Ele é lindo. A última e mais parecida comigo é Maria Clara. Lê Mafalda. Ela é chique. Pernas cruzadas. Silêncio. Dormem todos. Eu? Vigília.
Inexorável advém o sono. E o sonho. Ouço ao longe “Dos Gardênias para ti...” Estou voando. Mais alto do que os urubus. Descrevo arcos como os beija-flores e até para traz vou. Eriço penas de amor branco das garças. Arrulho. Sou barulhento e faminto. Corro ao meio-dia. Agüento tudo. Estou em todos os lugares como o pardal. Nem adianta me prenderem. Pois não construíram gaiolas para mim. Virei homem-passarinho. Vôo para onde quero. E mesmo ferido como me encontro, sinto-me livre!
JB Alencastro