Lição para Anita

Mais um dia se inicia. Mais um dia a vida adulta diz "repita o processo”. Mais um dia Dona Lia e a sua janela recebem a visita de Soneto, um caramelo velho e conhecido por todos no bairro. Mais um dia observo a dinâmica entre eles. O afeto é visível, quase palpável. A ida do cão é quase como uma oração - presente em todas as crenças e templos. O encontro é diário. E assim como os episódios de um projeto audiovisual, há os que anseiam em assistir a ternura do encontro e os cegos. Esses perderam o encanto dos detalhes, a sensibilidade de enxergar.

Mais um dia: domingo. Diferentemente dos anteriores, a vida não envia roteiro. Soa como um verso branco, livre. Todavia, obedeço ao hábito e rendo-me a mais um capítulo de Lia e Soneto. O trato, sempre igual, emana esmero e atenção. Os filhos de Lia estão na casa. Tal como um culto religioso, eles marcavam presença apenas aos domingos. A atenção da genitora era voltada tão somente ao cão. A postura de Anita, a filha caçula, denunciava um não entender. Talvez inveja. Os demais descendentes permaneciam imersos no telefone. O importante era a ida. O contrato social sempre vence.

Mais uns meses se passaram. A morte visitou Dona Lia. Ela tinha coisas a fazer no outro mundo. A morte é assim: antecipa as horas, enlouquece os ponteiros. E como um dependente emocional, Soneto continuava a frequentar as janelas de Lia. As portas exibiam os arranhões de um animal sem compasso. O latir nas manhãs assemelhava-se a fome de um bebê. Soneto queria o sentido da vibração, mas o coração estava na terra.

Mais dias sem Lia. Os filhos quebraram o contrato do domingo. Retornaram à casa para vendê-la. Soneto estava lá.

E Anita que nada entendia, ao vê-lo entendeu tudo.