“Quem conta um conto aumenta um ponto”
Finalmente, depois de longa espera o bairro estava recebendo o tão almejado calçamento. Era um ano político, época em que pipocavam aqui e acolá projetos e reivindicações engavetadas com a intenção clara no pleito que se aproximava.
Nas casas antigas, simples e semiprontas, notava-se em seus moradores um certo contentamento. As mulheres nas janelas exibiam sorrisos contidos e embora houvesse silêncio nos lábios, os mais atentos poderiam ler um muito obrigado.
As obras tinham adquirido, por assim dizer, o caráter de espetáculo, tendo os operários e o maquinário como atores principais. Na terra remexida pés infantis em carreiras intermináveis misturavam-se aos gritos e roncos de máquinas, a marreta tilintando, e a música brega nas alturas na casa do vizinho apaixonado.
Em pouco tempo as ruas tomaram novo aspecto, e a tranqüilidade de outrora, transformou-se num trânsito mais intenso e logo houve o primeiro acidente. Nada de grave, uma colisão entre um ônibus e um carro de passeio. Cheguei logo após o acontecido atraído pelo barulho incomum. Em minutos o lugar foi tomado pelos passantes e moradores que em pequenos grupos comentavam o acontecido emitindo opiniões. Chamou-me a atenção, não ver entre os presentes a D. Neuza, pois o acidente fora em frente sua casa, e qualquer coisa que acontecia no bairro e em suas redondezas eram de pleno conhecimento dessa figura tão popular.
Logo tudo ficou claro, pois num gesto brusco seguido de um rangido, o portão da casa de D. Neuza foi aberto, e ela com uma toalha na cabeça e com os olhos ávidos e estupefatos analisava a cena fatídica tão próxima do seu mundo e que até aquele momento não era de seu conhecimento em função de um banho em má hora. Na ânsia de recuperar cada detalhe perdido desfilou rapidamente entre os presentes munida de mil perguntas. E a cada pormenor, comportava-se com respiração entrecortada, mão sobre os lábios e os olhos apertados como se vivesse o narrado.
A partir daquele momento qualquer um que por ali passou ficou sabendo do sinistro através da D. Neuza. Com fala tropeçada, e com tamanha pressa em expor o acontecido, concomitante a uns gestos frenéticos, dramatizava o momento exato da batida, com um grunhido ensurdecedor, que supus ser o da freada, seguido do encontro de uma das mãos espalmada com a outra de punho cerrado resultando num estalo de assustar desavisados. Com a dimensão dessa encenação era possível sentir cheiro de pneu queimado.
Deixei a cena do primeiro acidente no bairro recém calçado com duas certezas, a do famoso ditado popular, “quem conta um conto aumenta um ponto”, e a de que pessoas como D. Neuza deixam o mundo mais emocionante e mais colorido do que, por vezes, realmente é.