AMOR CAWBOY

AMOR DE COWBOY

César acordou na sarjeta com a cabeça apoiada em sacos de lixo, três dias bebendo, suas chaves e a carteira haviam sumido, no bolso da jaqueta uma foto de uma mulher.

Segurou nas latas de lixo tentando levantar, o esforço fez com que vomitasse, pensou em ligar para o pai, não podia, o pai estava morto.

Olhou para a foto e pensou:

“Eu odeio você de muitas formas”.

A mulher na foto é Clara que está ao lado de um cavalo mangalarga paulista, um exemplar cinza, usa um chapéu de cawboy preto, tem um sorriso perfeito.

Um ano depois da morte do pai, ainda tinha muito ódio, bebia demais e decidiu ir trabalhar na cidade de Clara.

Quatro dias na cidade, entrou em um restaurante.

-Quer uma cerveja ? - perguntou o garçom.

César balançou a cabeça negativamente, não queria beber, não por enquanto.

-Soda limonada – disse.

Quando estava terminando, notou um rapaz vindo em sua direção, não teria mais que vinte anos, camisa rosa, sorridente, decidido sentou bem na frente de César, ascendeu um cigarro e disse.

-Você é o médico que anda xeretando sobre Clara?

-A notícia corre rápido aqui – César deu um sorriso.

César pegou o celular e mostrou a foto.

-Hum.. foi tirada na Cavalgada de Trancoso é a foto do patrocinador, está em todo lugar, o doutor gosta de cavalos? - disse o rapaz.

-Meu pai gostava, ele morreu ano passado, essa foto estava em um livro dele, tem uma dedicatória atrás.

-Mostra a foto do seu pai. - disse Léo.

César mostrou.

-Sangue de Jesus tem poder – disse Léo – você é filho do Paulo Barbosa? O treinador de cavalos, parece que ele e Clara, você sabe? - Léo juntou os dedos indicadores e disse - Próximos.

-Você sabe o que aconteceu?

-Sei tudo, ela é minha prima, não vou falar, em cidade pequena a fofoca é morte pra gente como eu, sou gay e pobre - disse Léo e levantou, bateu no ombro de César e falou baixinho – cuidado, o Ismael, filho do prefeito, acha que é dono da Clara.

Dois dias depois César encontrou com Clara no Hospital, ela disse que sentia muito pela morte do pai de César e pediu que apagasse a foto.

-Gostaria de falar um pouco sobre você e o meu pai - disse César.

Clara pareceu impaciente.

-É particular, não falo sobre isso.

César já ambientado e de folga foi na festa da cidade onde ocorreu uma apresentação com cavalos em que Clara se destacava, César assistia a apresentação dela distantes de todos.

Ismael chegou devagar, como as cobras fazem, e assustou César ao oferecer uma cerveja.

-Eu não bebo – disse César.

-Homem que não bebe! -Ismael cuspiu no chão e olhando firme para César disse - aqui macho bebe e fica bêbado, você é o filho do Paulo? – Ismael soltou uma gargalhada - o mundo dá muitas voltas, filho de Paulo Barbosa, não me diga que veio atrás dela?

-Caramba! Como respondo isso? Não sei, ninguém me fala nada da relação dela com meu pai, um cara de 50 e uma garota de 19 – César disse.

-Assunto proibido. - Disse Ismael e completou - ela é linda né doutor? Deixa um homem doido, seu pai que o diga, agora ela vai casar comigo - fez um gesto de cumprimento levando a mão na ponta do chapéu e saiu.

O acaso juntou Clara e César no verão, a moto de César, uma XL 250, quebrou no meio do nada, depois de quarenta minutos esperando ajuda no sol infernal César avista no meio do pasto Clara montada no seu cavalo.

-Que foi ai doutorzinho? - disse Clara descendo da montaria.

-Quebrou alguma coisa – disse apontando para XL.

-Cavalo de aço não presta - ela apontou o cavalo dela - quer uma carona ? -ela disse rindo, deu dois tapas no pescoço do cavalo e completou -o Badu ai aguenta, você é meio magricela.

-Não vou subir numa coisa viva – disse César.

-O senhor é adotado? Seu pai ensinou todo mundo a montar e deixou você de fora? - disse Clara.

-Ele era muito bom em deixar eu e minha mãe de fora.

Clara disse um até mais, ai César gritou que ia tentar.

Foi um suplício, o vexame todo ocorreu com Clara rindo sem parar, ajudou César com as mãos, o médico não parava de tremer, suava por todos os poros, César até ficou com medo de sair um pouco de urina e molhar as calças.

Semanas se passaram, eles se encontraram mais duas vezes, conversaram sobre muitos assuntos, porém Clara evitava falar do pai de César.

O beijo roubado aconteceu uma única vez no meio do pasto na sombra de uma castanheira.

-Tá louco – Clara gritou e César não teve dúvidas que ela cuspiu depois do beijo - Ismael vai te demitir por isso.

César olhou Clara nos olhos.

-Clara no livro do meu pai não tinha só a sua foto, tinha um bilhete pra mim, que li mais de cem vezes, só que esse bilhete só falava de você – disse César pegando um papel e entregando para Clara.

“Oi rapaz, sei que não fui um bom pai, nem marido, sempre estive próximo dos cavalos, amei os cavalos, até conhecer Clara, tão jovem, anjo com temperamento de onça, sabe o cavalo mais brigão do mundo? O sorriso, seus lábios, a sua forma íntegra de montar, antes dela minha vida era um nevoeiro, a ironia é que estou com câncer de pâncreas avançado, não desperdice a sua vida como eu, ame alguém assim.”

-Obrigada - Clara enxugou as lágrimas e perguntou – posso ficar?

-Essa coisa só fala de você, não quero isso.

-O que quer de mim César?

-Boa pergunta, eu vou te dizer - César balançou a cabeça negativamente – por que minha mãe ficou com ele, por que ela sofreu com ele, ele desprezava ela. Não era você que deveria estar lá no momento mais escroto da vida do meu pai?

-Ele não quis, foi esse o motivo dele ir embora, não queria que eu estivesse ao lado dele nos momentos finais, quando eu falei pra ele tudo que estava no meu coração, ele falou pra mim viver a minha vida e pensar nele cavalgando.

César foi demitido e deixou a cidade no mesmo dia, passou a trabalhar em uma cidade próxima.

Tomava um café, cigarro aceso, quando viu a mensagem no celular.

“ Oi doutorzinho, quero uma palavrinha, foi tão bom ler aquele bilhete que quero me despedir pessoalmente, estou indo para Goiás e nada de beijos, por favor, te espero domingo.”

O encontro foi debaixo da mesma castanheira do traiçoeiro beijo roubado.

-Você comprou um chapéu? - ela perguntou rindo alto.

-Estou fazendo aula de montaria. - disse César – ele deu um sorriso sem graça – meu padrinho no AA gosta de cavalos, resolvi tentar.

O vento soprou forte e o chapéu branco de César voou pra longe, Clara sorriu e César olhou nos olhos dela.

-Como está? - César já não sabia dos seus sentimentos, chegou odiando Clara, talvez hoje tivesse um respeito por ela, forçou o beijo para matar o abandono do pai, ou por vingança, agora sentia vergonha.

-Eu ainda amo outra pessoa, estou de luto por um amor – ela suspirou e disse -aquele beijo foi um erro grave, vou te perdoar porque me deu o bilhete e ele significa muito.

César baixou os olhos, deu pra sentir a tristeza no vento, a vergonha, Clara levantou, pegou o chapéu de César, limpou a terra, colocou na cabeça dele e disse.

-Calma Cawboy – ela sorriu – o Badu trouxe um amiguinho ai – ela assoviou e Badu apareceu do nada, amarrado atrás dele um cavalo preto, pequeno, Clara pegou as rédeas e disse – Vamos cawboy, vamos cavalgar, vamos ver o que teu padrinho te ensinou.

-Como é o nome desse ? - perguntou César que subiu com destreza no cavalo preto.

-Ponke – Clara riu – lesado igual você.

Vinte e cinco anos depois , Clara desceu do Cavalo, Ismael também, a igreja era pequena, poucas pessoas no velório, Clara entrou na igreja e foi até o cachão, passou a mão na face de César, parecia tão sereno, morreu na sarjeta, bêbado, Clara disse numa voz baixa:

-Tão parecido com pai por fora, tão diferente por dentro. - Clara olhou para Ismael parado na porta, sentiu o conforto da sua escolha.

JJ F SOUZA
Enviado por JJ F SOUZA em 07/08/2024
Código do texto: T8123539
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