Simplicidade não é burrice

Dona Teresa abriu a porta e olhou aquela figura caricata parada a sua frente e sentia pena. Muita pena. “Como, em pleno século 21, ainda podia existir criaturas tão simples? pensava”.

A mulher baixinha parecia ter saído de um caminhão de retirantes. Diretamente do livro "Vidas Secas" de Graciliano Ramos.

─ Minha patroa falo que a senhora tem sirviço pra mim?

Tida era uma diarista muito boa. Fora recomendada por uma velha amiga, a Margô. Fazia um ótimo trabalho. Nunca vira o apartamento da amiga tão limpo. Mas Dona Teresa, como boa profissional de psicologia, analisava a pobre mulher, como se pudesse identificar, com seus conhecimentos limitados da Academia, como ela chegara até ali. Como sobrevivera sendo tão ingênua, atrasadinha mesmo.

Sua falecida mãe costumava dizer que pessoas como Tida “morrem no ninho”. Expressão que ela usava para demonstrar que pessoas que não se adequam não sobrevivem ao sistema. O mundo as engole.

A diarista era sim uma mulher humilde nos seus 40 e poucos anos. Tivera 2 filhos. O mais velho já estava se formando na faculdade, conforme ela falava com orgulho. Segundo a amiga, ela vivera uma relação abusiva com o antigo companheiro e, por insistência dos filhos, acabou deixando-o. Margô jurava que ele a agredia. Por vezes a viu com hematomas nos braços.

Podre mulher! Quando Dona Teresa visitava a amiga, percebia que Tida nunca olhava nos olhos da patroa. Sempre envergonhada. Parecia um bichinho acuado. Quando sorria, colocava os dedos sobre os lábios para conter os dentes que saltavam da boca. Coitada! Não conseguia falar uma frase sem atropelar os verbos, as concordâncias...

─ Craro, dona Margô...

─ Pode dexa.

─ Os produto tá no armário?

“Era óbvio que não obtivera educação formal. Que vida triste, sofrida. Como havia chegado até ali? Deve ter comido o pão que o diabo amassou. Como criara dois filhos? Com tanta simplicidade não deve saber contar um troco, conferir uma lista de compras, dosar uma medicação, verificar o peso dos legumes na feira. Todos devem levar vantagem sobre essa pobre infeliz. Porque brasileiros costumam ser aproveitadores mesmo” pensava Dona Teresa.

─ Pelo menos Tida se diverte ─ disse Margô certa vez.

A diarista confidenciou à amiga que não perdia um forró. Toda sexta e sábado lá estava ela. Dizia que só arrumaria outro companheiro se ele não a proibisse de dançar na cabana do Ferreirinha.

─ Quanta privação essa criatura já deve ter sofrido? ─ comentava Dona Teresa com a amiga.

No fim do dia dona Teresa estava satisfeita. O apartamento estava limpíssimo. Na semana seguinte a nova patroa precisou sair antes que Tida chegasse, pois tinha um paciente bem cedo. Lembrou-se de deixar um bilhete para queTida passasse a roupa e engraxasse alguns pares de sapatos que ela esquecera na semana anterior.

Ao chegar ao consultório bateu a mão na testa.

─ Será que ela sabe ler? Coitada!

Lembrou de ligar e falar com ela, mas acabou esquecendo ao longo do dia. Quando a patroa chegou, a pilha de roupas e os sapatos ainda estavam no mesmo lugar, intactos. Do lado, o mesmo bilhete com uma frase a mais. Com dificuldade, Dona Teresa leu:

“Dona Teresa pra paçá roupa e ingrachá sapato tem que pagá ceparado”