A cara da dona

Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 30 de julho de 2024

Maria Lúcia, desde pequena, fora apegada a animais. Essa afeição levou-a, quando ainda adolescente, a se candidatar a um emprego em uma empresa que cuidava de cães. Sua tarefa era levá-los para passear, todos os dias. Fazia isso duas vezes por dia, de manhã e à tarde. Ao total eram dez animais, cinco em cada período, sentia prazer em realizar tal tarefa. O responsável pelos cães, tinha o cuidado de separá-los por tamanho. As raças de maior porte, como o pastor alemão, eram sempre levados a caminhar de uma 1h a 1h30min, e sempre pela manhã. Os menores, durante 30min, à tarde.

O contato constante com esses animais despertaram o desejo de ter um cãozinho seu, para fazer-lhe companhia, já que não era possível levar consigo um daqueles que era a razão de seu trabalho. Também não tinha dinheiro para adquirir um animalzinho. Em casa era só ela e a mãe, que precisava de seus cuidados mais do que aqueles cachorros dos ricaços, resmungava a idosa senhora. Com as reclamações aumentando, a filha viu-se obrigada a deixar o emprego e dedicar-se à mãe, que dizia estar próxima de exalar o último suspiro.

Sabedora do desejo da garota cuidadora de cachorros, uma cliente que colocava em confiança, os seus dogs aos cuidados da dedicada funcionária, resolveu presenteá-la com um deles, aquele exemplar canino, com o qual ela mais se identificava. Sabia que ele estaria em boas mãos.

Presenteada com aquele belo animal, dirigiu-se à sua casa, levando-o pelo caminho que sempre fazia todas as manhãs, durante os passeios matinais. O agora seu companheiro de nada desconfiava, e ia alegre e satisfeito, pois estava ao lado daquela que sempre lhe dedicara carinho. A escolha não fora aleatória, pois havia grande afinidade entre ela e aquele animal forte e belo. Os dois se davam muito bem, ele a obedecia prontamente, diferentemente dos outros.

Todo o trajeto da caminhada matinal, ao pararem para descansar, Thor, nome dado por Maria Lúcia, sempre parava ao lado de sua cuidadora, enquanto os outros procuravam se dispersar. Quando deixava os cachorros para serem entregues aos seus donos, ele latia muito, parecia um pedido para ir com ela, só parando de latir quando a garota desaparecia de sua vista. Então, de cabeça baixa, procurava se acomodar à espera do motorista de sua dona, que vinha apanhá-lo pontualmente às 9h30min. No outro dia era a mesma coisa. Tudo se repetia, e Maria Lúcia retornava para casa triste, sem antes fazer carinho naquela figura que já conquistara o seu coração, pela beleza, porte físico e afeição dedicada a ela.

Ao chegar em casa, com o seu novo companheiro, sua mãe resmungou bastante, mas, falando suavemente, a filha informou que aquele seria o companheiro e vigilante das duas, por ser manso, dócil e brincalhão, capaz de trazer alegria e diversão para a nossa rotina, completou ela.

Depois de alguns meses em companhia das duas, as pessoas que as visitavam diziam que o cachorro parecia muito com a sua dona. Alguns especulavam sobre algumas evidências de que cães de raça e seus donos tendem a se assemelhar em algum nível. A garotada a chamavam a “garota de cara de cachorro”, ela não se incomodava.

Maria Lúcia, de tanto ouvir essas informações a respeito da semelhança entre um animal e seu dono, foi se acostumando e também passou a achar que seu Thor era parecido com ela. Seu amor pelo animal redobrou, cuidando dele como se fosse um filho, que ela nunca teve.

Com a morte da mãe, por doença contagiosa, sua dedicação para com o filho se intensificou. Preocupada, já não deixava o animal afastar-se um palmo de sua presença. Não permitia que alguém chegasse perto dele, com receio de que fosse contaminado. Sua preocupação maior era que seu filho, como sua mãe, a deixasse sozinha naquela casa velha e feia, e fosse morar com outras pessoas. Havia tempo que a cuidadora de cães estava doente, esquizofrenia, desencadeada pele morte de sua mãe. Alucinações, delírios e alterações em seu comportamento, foram sintomas diagnosticados para Maria Lúcia, que já quase não cuidava de seu cão, Thor.

Esta notícia chegou aos ouvidos da ex-dona do Thor, que, preocupada, foi visitar Maria Lúcia, encontrando-a dormindo e muito magra, a casa em desordem. Compadecida, prontificou-se a interná-la, às suas expensas, em um hospital psiquiátrico. O cão, ao lado da cama, cuidando da sua companheira, apresentava-se sujo, mas forte e alimentado. Não reconheceu a sua antiga dona, afastando-se dela quando acarinhado. Esperneou muito quando foi colocado em uma caixa de transporte de cachorro, enquanto sua dona era levada, em uma ambulância para um hospital.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 30/07/2024
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