Um dia comum
Um dia comum
As primeiras luzes da manhã vão invadindo os espaços da casa de Ada. Parece ser um dia ensolarado, ela não quer ver, não quer ouvir os barulhos rotineiros. Os passos da vizinha na casa ao lado, o portão que se fecha quando o vizinho da frente sai para trabalhar, escuta uma mãe berrando com o filho que chora. A mulher se levanta do sofá com esforço, vai olhar o calendário na parede e vê aquela data marcada: vinte de junho, os olhos se suavizam. Ada espera. Nem sabe o espera nos seus dias iguais, não são as filhas. Não tem um instinto maternal universal, ela tem sentimentos ambíguos em relação às filhas.
Ada vai para varanda dos fundos para fugir da vida que se mostra ao iniciar daquela manhã. O barulho do aspirador começa a invadir o seu dia. Mesmo assim pega a bíblia para ler, “Jesus, por que essa criatura não diminui esse barulho dos infernos”. Larga o livro na cadeira, retira os óculos e grita.
- Ana, limpa sem esse aspirador barulhento, está doendo a minha cabeça! - Mente sem sentir arrependimento para voltar a sua leitura. “Por que eu falei isso”, afinal a mulher não tem culpa se eu não me concentro em nada. Volta a sua leitura com pensamentos espaçados pela imagem do filho, quando escuta alguém chamar.
- Ada, Ada vem cá, quero falar contigo. - Fala uma mulher com os cabelos brancos em desalinho na testa.
- Já vou Sofia, que sangria desatada é essa?- O que tu quer? Responde Ada com a testa enrugada e os olhos apertados.
- Já te falei, ué. São as folhas da tua árvore no meu pátio. Desculpe te incomoda, sei que hoje é o dia dele, está de limpeza e tal...
- Vou manda podar a árvore, quantas vezes, já te disse, tu parece surda. –Fala rápido sem dar mais conversa e volta para varanda.
A mulher torna a sentar, pega a bíblia e os pensamentos se tornam circulares: o dia dele, o seu dia vazio, a limpeza da casa, a vizinha fofoqueira, todos sabem.” Será que ele vem?” Ouve o tilintar da companhia, Ana grita que o carteiro quer entregar as coisas dela. “Odeio os berros dessa mulher”. Ao mesmo tempo em que grita da varanda para o carteiro que já vai. “ Não tenho paz hoje, eu só quero vê-lo nesse dia”.
- Bom dia, Dona Ada, e as dores nos joelhos melhorou? - Pergunta Zeca com uma intimidade típica de quem anda pelo bairro diariamente e conhece as trivialidades e dores de cada um.
- Nunca tive dor nos joelhos. O que foi Zeca, por que me chamou?- Ada pergunta da portinhola, sem ao menos abrir a porta.
- Ué, Dona Ada, são as contas que a senhora pediu para entrega e não deixa na caixa de correio, pois os meninos ficam pegando as suas coisas. - O carteiro fala com uma expressão agoniada ao notar a irritação da idosa.
- Tá, tá, deixa na caixa que depois eu pego.- Fecha a portinhola, vai para cozinha fazer um bolo de chocolate para ele.
Talvez Oswaldo venha, afinal é o aniversário dele. Não consegue entender por que o filho não atendeu aos telefonemas dela. Ligou cedinho e ao meio dia pois sabia dos horários dele. “ Tanto tempo, não a visitava, sempre ocupado”. Ela sempre a espera daqueles olhos verdes. Vem lhe a sensação inócua de ter criado filhos para nada. Ana berra que está indo embora e pegou o dinheiro da mesa da sala. Ada nem responde, escuta o barulho da batedeira fazendo a massa do bolo, coloca no forno,olha o relógio para marcar o tempo. “ vai fica pronto até ele chega”
Ela liga novamente para casa do filho, ninguém atende. “ São sete horas, ele já devia ter chegado”. Olha pela vidraça, as luzes se esvaindo do dia, o silêncio se instalando pela casa, pela rua, pelo bairro, pela vida de Ada. Ela se levanta com dificuldades da cozinha, olha o bolo, está pronto sobre a mesa com duas velas azuis: 40 anos. O telefone toca, Ada escuta calada a voz do filho.
- Mãezinha, desculpa, não vou consegui ir na tua casa.
16/05/2022
Marisa Piedras