Meu olhar
Ele me chama de Môzi (no começo eu era Amorzinho, com o tempo ganhei esse codinome estranho, curto e singelo ao mesmo tempo). Eu gosto.
Dividir a vida com alguém durante tantos anos é um prática de fé, é o que eu digo para nossos amigos há decadas e outros casais.
Tomando café da manhã fico observando ele sentado na minha frente. Os cabelos grisalhos ainda são sedosos, mas já foram mais fartos. A pele tem rugas e marcas de expressão . O sorriso continua charmoso, os dentes alinhados.
Envelhecer não é fácil. Envelhecer ao lado de uma pessoa e perceber como ela reage às circunstâncias da vida, inventa manias, lida com o fatos do nosso passado, as perdas das quais ninguém escapa é fascinante e assustador, algo envolto em certo mistério.
Tantos casais não estão mais juntos, pareciam apaixonados, se casaram na mesma época, moravam na mesma região da cidade, tinham muitas afinidades (ou pareciam ter) e nós dois, aqui, amalgamados.
Enquanto tomo meu café tinindo de quente, que acabei de passar, ele faz a torrada que ele gosta de comer com geleia caseira de frutas, sem açúcar, fico pensando, sem nada dizer, como percebo nele as mudanças do tempo, o ajuste do temperamento, a passagem dos anos, é como olhar em um espelho, temos quase a mesma idade, vivenciamos tanta coisa juntos.
Enquanto como as frutas picadas que guardo na geladeira (deixo pronto, em um pote bem fechado, na noite anterior) com chia e mel respondo as perguntas dele com frases curtas como "sim, eu também" ou "claro que vamos" fico refletindo sobre a rotina dos dias, que se tornaram décadas, como se sempre estivéssemos confirmando informalmente nossos votos, não porque prometemos, mas que preferimos assim.
Eu o chamo de "Uil" (o nome dele é daqueles bem diferentes). O chamava de paixão nos primeiros anos do casamento. Aos poucos, não menos amorosa, passei a chamá-lo assim, como ele não protestou e até achou singelo eu continuo até hoje. A família dele o chama de Morais, sobrenome deles, por conta do avó dele, eu acho. Tem história que se perde no tempo, talvez o chamem de Morais por outro motivo. Não faz diferença.
Ele está ao meu lado desde que nós dois éramos muito jovens, nossas famílias eram numerosas, nossos pais estavam vivos, ter filho ou filha era apenas um projeto, minha pele era cheia de colágeno e ele tinha um sorriso lindo que fazia meu coração derreter, daqueles que transparecem os sonhos de um jovem, os projetos de uma vida de quem está apenas começando, cheio de vontade de realizar.
Meu café da manhã é quase um momento de meditação. Não é minha principal refeição do dia, mas é quando, sentada na cadeira, sentindo os aromas do chá que ele gosta de preparar e do meu café, das frutas e dos pães que eu reflito como tem sido a vida. Depois de lavarmos juntos a louça do café, deixar tudo organizado, o dia começa como um turbilhão de trabalho e horário para cumprir, de coisas para fazer, de vontade de abraçar o mundo, e o dia, sem aviso, passa como se eu estivesse tentando agarra lo, frustrada, indo deitar exausta, só às vezes, satisfeita com o rumo que as coisas estavam tomando no dia a dia, acreditando que as 24 horas seguintes tudo será mais ameno.
É impressionante como o tempo passou rápido e simultaneamente parece quase impossível que tenhamos vivido tanta coisa, foram natais, festas de aniversário, comemorações de mais um ano do nosso casamento, dois filhos, tantas fotografias, viagens, passeios, dores, velórios, abraços de condolências, festas de formatura dos nossos filhos e das filhas dos amigos, visitas em hospitais, rituais de cremação, lutos, comemoração de alguma pequena conquista das crianças, enquanto trabalhamos e poupamos dinheiro, estudamos, celebramos a nossa grande felicidade que foi comprar um apartamento maior dando como parte do pagamento o pequeno que havia sido nossa primeira casa. Houve brigas também, que não demoraram para serem superadas e a intimidade que não cabe relatar aqui.
Compramos nosso carro, um modelo velho, nosso primeiro veículo, depois nosso primeiro apartamento para pagar parcelado em muitas vezes. Depois de certo tempo usando carro velho finalmente conquistamos nosso primeiro carro "bom", que dividíamos, depois de algum tempo compramos um carro para cada um, que trocamos por outros melhores. Começamos há tempos com o saldo zero no banco, muitas possiblidades e milhares de dúvidas.
Acordar ao lado dele, tomar café da manhã, é sempre igual, ele gosta dos mesmos sabores desde adolescente. Eu mudei um pouco meu paladar ao longo dos anos, o corpo também mudou, o peso oscilou, a disposição, libido, os sonhos, as decepções, tudo flutuou à nossa volta e nós vivemos, escolhemos alguns detalhes e lidamos com todo o resto que a vida determina, sem dar aviso prévio e nem perguntar se estamos prontos.
Analisando em retrospecto conquistamos tantas coisas como casal, fomos forte, desabamos com as tristezas, fomos felizes, lidamos com dores profundas, tivemos medo, discussões, dei apoio, recebi palavras de incentivo e o saldo atual parece muito positivo. E nem estou falando de conta bancária.
O "durante" foi recheado de dúvidas, ansiedade, medo de estar demorando para agir, receio de ter sido ousada demais, vontade de fazer mais, desejo de parar um pouco para tomar fôlego, necessidade de agarrar oportunidades, exaustão do corpo pedindo dias de descanso.
Amanhã sei que acordarei ao lado dele, que dará bom dia do mesmo jeito como sempre fez, sentaremos para tomarmos nosso café, sairemos depois de tudo arrumado cada um para o seu trabalho.
O dia transcorrerá e a noite nos reencontraremos, vamos jantar juntos e conversar bastante.
Um dia de cada vez ao longo de um tempo que é finito, mas que ninguém pode definir quando acabará.
A vida é uma sucessão de apostas.
Sigo gostando de apostar.