Escravo do tempo
Não poderia imaginar a sombra daquela árvore sem ela, sem nem ao menos lhe olhar nos olhos. Passam-se as mais bonitas primaveras floris e nada penso por quê? Admito essa pergunta me atormenta, me dilacera. Não ouso ficar de pé, dou apenas sorrisos aos que passam e me cumprimentam. Sou mecânico como a queda de folhas do meu jardim.
Tenho sessenta e três anos e a morte me sorri, divago e penso sem parar, mas cadê o som da gota que não ouço. Não sei, acho que os seres humanos perguntam demais e não sentem. Tudo faz uma falta miúda e egoísta. Sou seco e cego e não acho de mim nada que ressoe como as trombetas sagradas dos arcanjos, sou solitário entre milhões e não penso em nada mais do que ela e mim. São quatro horas, a tarde principia acabar como os meus pensamentos, sentado na cadeira de madeira seca, de um rangido estranho que às vezes me faz companhia. Do primeiro andar eu vejo o mundo, e nada mais me interressa, só as coisas sonoras me tocam e me entendem. Meu amor já não está mais entre nós, morreu sem eu tê-la beijado, mas nem por isso a amo com menos intensidade.
Tenho consciência da minha inutilidade humana, sei também que sou um produto da minha megalomania moderna, do viver intensamente a todo custo. Mas por quê eu fui tão conivente, apático por entre as veredas da vida. Não vivi aventuras humanas construtivas, não passeei pelos “subterrâneos sociais”; vivi apenas para me enclausurar de todas as formas. Admito só amei Júlia com toda a força necessária, com as outras pessoas apenas convivi, aturei e nada mais.
Sou o produto mais completo do meu egoísmo e dele não escaparei, sou escravo do sonoro em todas as formas, como disse ele foi o meu alento. Mas mesmo assim não conheci a plenitude, a mascará já se quebrou. Antes eu olhava o mundo pela fresta do meu egocentrismo, hoje vejo a vida por inteira e o sol me queima a face. Não há mais tempo, não serei mais o mesmo, desisto. Ontem mesmo descobri que estou cada vez mais só, o relógio que muito admirava pelo seu tic-tac preciso e útil, entorpe os meus tímpanos, me relembra a cada dia que nunca mais serei dono de mim, a morte avança e não tenho mais medo.