O tombo

— Vitória! Corre Vitória que assim a gente se atrasa garota!

Sábado de manhã e Joana precisava ir ao Centro da Cidade resolver um problema financeiro: acontece que uma de suas clientes do fiado estava com quatro unhas feitas para pagar a mais de um mês, e sempre que entrava no assunto a tal fulana desconversava, dizia que iria enviar um Pix, que o dinheiro seria depositado, que iria deixar na casa de uma amiga. Esse dinheiro nunca apareceu. Joana ameaçava colocar juros, ir na loja em que ela trabalhava, fazer um barraco. Nunca fez, mas hoje, ela tinha plano: iria pegar a queridinha no bote.

Sabia, por outra amiga, que a caloteira iria bancar uma de poderosa num salão de beleza no Centro da cidade — “um dia de princesa”. Havia marcado unhas, cabelo e depilação. Teria que estar com dinheiro para isso.

— Quando me chama pra fazer as unhas é sempre no fiado e agora tá rica pra gastar em salão? Vai se ver comigo…

Estava levando sua filha Vitória consigo para não ir as vias de fato por qualquer coisa e acabar perdendo o réu primário por conta de caloteira.

— Anda logo Vitória, se demorar muito nem precisa ir, viagem perdida.

Joana, para forçar sua filha a largar do espelho e do pote de creme de cabelo, foi saindo para o corredor ainda calçando o segundo pé de tênis,. Já estava saindo pelo portão da rua quando olhou para trás e ouviu a filha gritando:

— Espera mãe! Que pressa toda é essa? Parece até que vai matar alguém…

— Que matar alguém! Eu vou é matar você de tapa daqui à pouco! Matar alguém… de onde você tira essas histórias garota?

Seguiu em direção a escadaria do beco. Vitória mexendo em seu telefone ficou cinco passos atrás. No final do beco, o som alto de uma batida de funk: três adolescentes que nunca havia visto na vida faziam uma coreografia boba, usando roupinhas coloridas: gravavam mais um vídeo para o TikTok.

Ela, que já vinha irritada com Vitória desde que saiu de casa, não estava muito com paciência para dancinhas de criança e já foi pedindo licença, gritando. Vitória, morta de vergonha com a mãe atrapalhando a gravação.

— Anda Vitória! Eu tô com pressa Vitória!

Ao se virar novamente em direção da escada, não reparou em seu cadarço desamarrado bem no tênis que calçou às pressas. Joana tropeçou e tombou na escadaria. O jovem cinegrafista não perdeu tempo e imediatamente direcionou seu telefone para da mulher que caia. A cada degrau que Joana rolava, por impulso ou reflexo, preocupada com a filha ou talvez com muita raiva dela apenas gritava:

— VITÓRIA!

E rolava mais degraus:

— VITÓRIA!

Deixou para trás a sua bolsa:

— VITÓRIA!

Saiu um tênis de seu pé:

— VITÓRIA!

O tombo só cessou quando, com muita raiva e dor, viu-se sentada no primeiro patamar da escadaria. Então Bradou:

— VITÓRIA!!!

Joana, depois do tombo, levantou-se cheia de escoriações e raiva de tudo: de sua filha Vitória, que, como todo adolescente com um smartphone em mãos, fez o que pôde para irritar a sua apressada e impaciente mãe; da caloteira que, a essas horas, ganhou a oportunidade de fazê-la de trouxa por mais um final de semana; dos moleques que estavam rindo de sua situação deplorável; e de si mesma por se permitir passar por uma situação dessas.

Vitória, quando viu sua mãe rolando pela escadaria afora, no primeiro momento congelou, não sabia como agir, mas imediatamente desceu a passos largos, dois degraus de cada vez.

— MÃNHEEEEEEÊ!

Essa parte da cena o mini cinegrafista amador não se preocupou em gravar. Vitória, chorando, segurou na mão de sua mãe e a ajudou a levantar.”

— PORRA VITÓRIA! Não dava pra andar mais rápido? Olha só que droga? Eu tô toda ralada. Minha blusa rasgou, não vai ter como a gente ir em lugar nenhum assim.

Vitória chorando não disse nenhuma palavra.

— E vocês seus filha das putas, tão rindo de quê? Bando de moleque abusado… nunca vi essas porra por aqui.

Assim que se ajeitou os meninos do TikTok deram no pé. Em casa, sentiu seu corpo todo dolorido, tomou um banho, um dorflex e deitou-se no sofá. Como não pretendia mais sair de casa, deu a si mesma um atestado médico. Com o seu telefone, ficou assistindo a reels, conversando no Whatsapp, tentou ver um episódio de sua série favorita, desistiu. Foi jogar vídeo para cima, passar o tempo. Assistiu um, dois, três vídeos curtos, quando se deparou com o seu próprio tombo na escadaria do Beco, sua cara estatelada por um zoom forçado ao extremo. Um funk que falava “A novinha senta pan pan” repetindo infinitamente enquanto rolava escadaria abaixo. Rolava e gritava por sua filha. Levou um susto que lhe fez suar a nuca ao mesmo tempo que tremia as pernas. Assustada por pouco não gritou por sua filha novamente. Para o seu imenso terror o vídeo seguinte era uma variação ainda mais tosca do primeiro, dois vídeos acima o horror se repetia.

Seu tombo estava em todo lugar de várias formas e montagens diferentes, com ou sem trilha sonora, haviam milhares de visualizações, centenas de comentários em cada vídeo, um mar de “KKKs”, comentários debochados e muitas vezes maldosos, uns dizendo que ninguém cairia daquele jeito, que era mentira, encenação.

De uma hora para outra, todo mundo estava rindo de Joana. O mundo todo. O vídeo que o moleque filmou viralizou instantaneamente no TikTok, não demorou nem um dia para que estivesse estourado também em todas as outras plataformas e redes sociais. O sucesso do meme aumentava a cada réplica, em quase todas as contas que o repostavam, a cada nova montagem. Youtubers, tiktokers, influenciadores de todo tipo faziam novas sátiras, novas reações, dublagens ou só comentando a cena hilária. Fizeram GIFs, clipes musicais, um funk de sucesso imediato, uma dancinha, jogadores de futebol comemorando gritando Vitória. Apresentadores de TV fazendo piadinhas. Um outro louco tatuou a cara de Joana, o tênis no braço.

Milhões e milhões de acessos. Contas pequenas nas plataformas viralizaram às custas do tombo de Joana. Todos riram e comentaram ‘o tombo da vitória’ por duas semanas nos “top trends”, mas ninguém sequer parou para perguntar quem era aquela mulher rolando a escada.

“🎶 Que aqui a botada é bruta Na socada, igual não tem

Bandido mau, mas com carinha de neném 🎵”

Luiz RRosa
Enviado por Luiz RRosa em 28/07/2024
Código do texto: T8116486
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.