Cautela Com o Diabo

O que será que tem do outro lado?

Perguntei a meu pai, a trinta e poucos anos atrás. Ele, meio atordoado, por não esperar essa pergunta de uma criança e até mais, por não saber a resposta, ficou pensativo por alguns segundos.

Talvez por seu medo da morte ou por temer que eu não partilhasse dele, decidiu elaborar a resposta mais fria e assustadora. Disse em tom sério e sem cerimônia alguma: não há nada. É o fim de tudo.

Me vi atônito, de repente. Um vazio invadiu meu peito, tomou conta de minha alma e eu não consegui pensar em mais nada. Para que fazer alguma coisa, se no fim de tudo não há nada? Logo comecei a chorar. Mamãe veio correndo, meu pai desesperado pela burrada tentava me acalmar e eu não conseguia dizer uma só palavra e tropeçava entre as letras, a cada soluço.

Ela, minha mãe, tentou me explicar sobre Deus e o que quer que fosse o paraíso. Apenas me disse para ter cautela com o diabo e que tudo ficaria bem. Ela acreditava e eu fingi que acreditei pra me sentir melhor. Passei a torcer pra que ela estivesse certa, mas durante os anos as decepções se acumularam e crer em um ser além de mim e com todo o poder pra acabar com o mal, se tornava uma tarefa cada vez mais pesada. Logo larguei disso.

Jamais fui ateu. Não me entrava bem a garganta a ideia de que não existisse nada. Me dava enjoo, ânsia de vômito, ansiedade, febre e náusea. Dor de cabeça... Era impossível ter certeza de algo, tampouco da falta dele.

E assim cresci, até o dia em que tive de escolher algo pra chamar de profissão. Mamãe queria um padre, papai queria um médico. Ela por acreditar que eu acreditava em algo e meu pai pelo dinheiro, por medo de eu acabar como ele. Não me pressionavam, nunca. Queriam que eu escolhesse qualquer coisa que me tirasse do status de parasita social, vagabundo profissional. Para não desagradá-los, escolhi o meio-termo: advogado. Dava bom dinheiro e ajudava os necessitados. Promotoria pública, é claro.

Eventualmente o trabalho me levara a causas nobres, ajudando inocentes e velhinhas extorquidas por asilos e parentes. Mas também haviam dias ruins, pessoas ruins, malandros, assassinos, crimisosos conhecidos.

Um destes, conhecido como Matuto, havia matado a própria mulher, Aline, com sete tiros pelas costas enquanto ela tomava banho. Suspeitava de traição e, por não conseguir nada perguntando, resolveu enterrá-la no quintal. Não fez muito funda a cova e não demorou muito pro cheiro subir. Foi preso tentando mudar o cadáver de lugar, com provas e mais provas de que tinha sido ele. Amigos testemunharam a seu favor e ele deu a desculpa de que havia sentido um cheiro estranho no quintal e que estava tão surpreso quanto todo mundo. Eu, como advogado acionado prontamente em defesa da criatura, fui obrigado a fingir que acreditava, assim como com o lá de cima...

Entenda meu motivo: tinha medo da morte e do nada que me esperava do outro lado, então, com cautela, acatei as ameaças do monstro que sentava próximo a mim nas audiências. Não era a primeira vez que ele tinha feito isso e nem seria a última, assim como a minha advocacia para o diabo.

Ele nunca me ameaçou diretamente, mas tudo que lhe pairava e todas as expressões que cobriam seu rosto me alertavam do que estaria por vir, caso eu não acatasse.

Eu o visitei algumas vezes durante os julgamentos, antes e depois de sua mulher ter sido assassinada, e pude ver como as coisas na casa mudavam. Quadros sumiam e reapareciam, mostrando que até mesmo canalhas ficam em luto por pessoas amadas. Se ele estava fingindo, eu não sei, mas se estava, estava fingindo muito bem.

Eu nunca dizia nada disso a ninguém, é claro. Tinha medo e vergonha daquilo tudo. Papai e mamãe se orgulhavam e eu não queria estragar nada disso, mas um peso enorme me recaia sobre a consciência. Então fui até Mônica, uma amiga de faculdade que havia cursado, além de direito, culinária, pedagogia e psicologia, até por fim terminar como veterinária.

Ela tinha sua clínica logo na subida do morro onde morava o Matuto. Após uma visita a ele, fui até minha colega para desabafar.

Ela me disse o óbvio. Que eu deveria manter tudo aquilo pra mim e que não deveria nem mesmo ter dito a ela. Porém, botado pra fora todo o sufoco, ela me acalmou e eu voltei pra casa.

Nos dias que se sucederam, passado três meses do assassinato, Matuto foi inocentado e eu voltei a cuidar de casos mais triviais. Estava me preparando para uma conversa com um cliente quando me dei conta de que havia algo de errado em minha casa.

Ao ligar o chuveiro e começar a tomar banho, me dei conta de que meu shampoo havia sumido. Senti um frio percorrer meu corpo, acho que nunca senti tanto medo em minha vida. Meu coração disparava dada a realização do que estava acontecendo. Sai de pressa do banho, juntei uma mala com algumas coisas e fui correndo pra fora de casa. Enquanto andava apressado pela calçada puxei meu celular do bolso e disquei o número de minha mãe.

Antes que ela pudesse atender, três estrondos se seguiram. Senti queimar minha orelha, minhas costas e logo depois da ardência veio as pancadas. Cai no chão, como se tivesse tropeçado na calçada. Fechei meus olhos, me fingi de morto. Tinha a certeza de que algo terrível havia acontecido.

Alguns minutos se passaram no que pareceram horas e eu abri meus olhos, um de cada vez. Estava deitado contra o concreto, meu celular a alguns metros de mim, completamente destruído. Senti algo escorrer pela lateral da minha cabeça: era sangue e estava quente.

Me levantei sem muitas dificuldades, olhei para meus arredores: ninguém por perto. Senti uma ardência nas costas. Olhei para baixo: um buraco bem no meio do meu peito. Sangue escorria lentamente pela ferida.

Eu sabia bem o que estava acontecendo. Estava lúcido até demais. O medo da morte me nutria de adrenalina a cada segundo. De reflexo tampei o buraco com a mão, mas era inútil, o estrago já havia sido feito. Respirei fundo e senti uma dor enorme. Estaria meu pulmão perfurado?! Pensei em mil coisas ao mesmo tempo, pensei em ligar pra ambulância, mas o celular estava destruído. Pensei em descer até o UPA, mas Matuto era o dono do morro e um rapaz baleado certamente não passaria despercebido. Pensei então, na única alternativa: Mônica.

Em vez de descer, subi, com todas as forças que tinha. Me bambeavam as pernas e eu sentia pouco a pouco o ar se esvaindo de mim. De repente me peguei pensando no que havia do outro lado. Toda a cautela do mundo e pra que? Para acabar morto e baleado nas ruas do Vale dos Condes?

A duas quadras de Mônica foi quando me dei conta de que não aguentaria e de que essas memórias seriam póstumas. Mas como poderia ter certeza? Afinal, não havia nada depois daqui.

E talvez assim melhor fosse, talvez fosse melhor não ser julgado pelos meus tantos pecados. O ar se esvaiu de vez dos meus pulmões e eu cedi a gravidade. Caí no chão e nem senti. Estava dormente.

Lembrei do cheiro dela... é curioso falar assim, mas foi a primeira coisa que me veio a cabeça. Nem meu pai, nem minha mãe, tampouco Deus ou outra vida... Ela... ela foi tudo o que me veio a cabeça. Será que me esperava do outro lado? Torcia então para que de repente, isso fosse real.

A ardência cessava, assim como meus olhos e minha consciência. Tudo o que me rondava parecia estar em câmera lenta. Assim eu vi o mundo se esvair de mim.

E então, do nada, além do cheiro dela, surgiram seus cabelos morenos, sua pele macia e seus olhos flamejantes. Ela estava de costas e eu conseguia ver os sete buracos de bala. Mostrei os meus timidamente, pois só tinha dois. Ela riu, como sempre ria e se mostrou, como sempre fizera...

Matuto fora mais inteligente do que eu esperava. Eu que achava ser capaz de passar a perna no diabo mais de uma vez. Eu que havia me apaixonado por ela, Aline.

Que havia me banhado em sua luxúria e me perdido em sua descrença. Se havia um homem em luto após sua morte, haveria de ser eu.

E eu tentei não transparecer, mas a saudade me matava. Foi aí que decidi pegar o caso de Matuto. Sabia que era a única forma de ficar perto dela, ou ao menos, da memória dela, mais uma vez.

Mas as coisas foram de mal a pior...

"É isso?" O diabo me olhou nos olhos, surpreso com o fim da história.

"É." Respondi.

"Mas e a Mônica? E o Matuto? Como ele descobriu? O que tinha no tal do shampoo?" Sua calda balançou e se enrolou no tridente flamejante.

"A Mônica, bem... eu não sei. Mas meu shampoo é mais que óbvio como o motivo para o Matuto ter me descoberto."

O diabo franziu a testa, colocou os dedos indicadores na cabeça e a massageou tentando juntar as peças. De repente, saltou da cadeira, bagunçando todas as cartas e fichas da mesa.

"O cheiro! Foi o cheiro!"

"Eu disse que ele tinha bom olfato." Respondi confiante.

"Você moscou em não trocar de shampoo."

"Pois é, mas achei que ele não teria como ter certeza só com base nisso."

"E ele não tinha. Isso aí certamente foi obra do-" Ele se freou de dizer qualquer nome.

"Não... não pode ser."

"To te falando cara. Não tem pecado pior que a traição." Afirmou rindo.

Ficamos em silêncio jogando cartas por mais alguns minutos.

"Caramba... cara, você devia ter sido escritor."

"Agora já não adianta mais."

"Pois é... quem sabe numa próxima vida então?"

"É... quem sabe..."

"E pensa pelo lado bom, pelo menos você não ta queimando com eles." Ele apontou para a direita. Na distância, várias pessoas estavam mergulhadas em um rio de lava. Seus olhos quase saltando de suas cabeças, seus gritos abafados pelo fogo e pela distância.

"Pois é... Agora me conta você: o que diabos essas pessoas fizeram?"

"Eu não sei, elas nunca me contaram."