O senhor do sono
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 23 de julho de 2024
Algumas cidades brasileiras, invariavelmente, contam com tipos populares cujos nomes foram esquecidos, passando a serem reconhecidos pelos seus apelidos. São personagens, geralmente excêntricas, portadoras de defeitos físicos, desmemoriadas, gordas ou magras demais, alcoólatras ou engraçadas, rezadeiras, sempre ridicularizadas. Ao serem injuriadas, desafiadas, provocadas, reagem jogando pedras na direção de seus desafiantes, correndo atrás das pessoas, ou soltando impropérios, que escandalizam a todos. A garotada dessas cidades são as mais provocadoras, por puro divertimento. Os folhetos de literatura de cordel tratam desses casos com sucesso.
Em uma pequena cidade do interior cearense, residia um desses personagens, que, diferentemente dos caracterizados acima, não se comportava como eles. Suas atitudes consistiam em dormir onde fosse possível, se encostar sem perder o equilíbrio. Certo dia, ao encostar em um poste de energia, acomodou-se satisfatoriamente, caindo no sono. As pessoas que o conheciam tentaram acordá-lo, sem sucesso.
Já passava da meia-noite e o homem continuava no mesmo local, agora acocorado e encostado no poste, dormia a sono solto, isto é, em estado fisiológico caracterizado pela insensibilidade dos sentidos. Parecia que estava em uma confortável cama, coberto com lençol de seda branco.
Os moradores já não se importavam com isso, sabiam que ele não importunava ninguém, sempre calmo e educado. No outro dia, ao acordar, levantou-se disposto, dirigiu-se à sua casa, se é que podemos chamar aquele barracão de madeira, de casa. Dois cômodos, um quarto, tendo anexo uma cozinha improvisada, e um outro, que servia de banheiro, também improvisado, para as suas necessidades fisiológicas. Anexo à essa estrutura, um quadrado de madeira, com porta sem tranca, que servia para o asseio corporal matinal, quando se sentia imundo, segundo as palavras do próprio “senhor Manelantonio”, como gostava de ser tratado. Limpinho, ele percorria certos espaços da cidade, andando com elegância e altivez, como um lorde.
O homem tinha apenas três mudas de roupa, três calças, um paletó, para casos especiais, três camisas, algumas cuecas, doadas por pessoas generosas, um sapato, um pouco gasto, e duas sandálias, uma havaiana e uma de couro, também doadas por generosos. Com tudo isso ele tinha o maior zelo, estava sempre lavando, limpando e guardando-os cuidadosamente em um velho baú de vime, achado em um local de objetos recicláveis, de onde conseguiu alguns objetos utilizados em sua cozinha.
Como não trabalhava, saia portando uma lata, daquelas de leite em pó, com capacidade para 2kg, pelas ruas da cidadezinha, solicitando comida para o seu almoço do dia. O que sobrava, guardava para o jantar. E assim ele ia vivendo, sem desagradar a ninguém, sem se preocupar, ou ter consciência do que estava acontecendo ao seu derredor. A cidade também não mais se preocupava com ele.
O farmacêutico local, após tomar conhecimento do ocorrido naquela noite, com o “senhor Manelantonio”, consultou o médico da cidade, que esclareceu tratar-se de um caso de narcolepsia, doença crônica neurológica caracterizada por alterações no ciclo do sono. A pessoa apresenta sonolência excessiva e incontrolável durante o dia, sendo capaz de dormir profundamente em qualquer momento, podendo interferir na vida familiar, de trabalho e social. Esclareceu, ainda, que os sintomas dessa doença costumam manifestar-se, inicialmente, na adolescência ou no começo da idade adulta, persistindo durante toda a vida. Suas causas são desconhecidas, mas não afeta a expectativa de vida, concluiu o médico!
Sabedor das consequências descritas pelo médico, o farmacêutico encetou campanha em benefício do tratamento do acometido pela doença do sono. Sem ele saber, chamaram um hipnotizador, para agir interativamente com o homem acometido de sonolência excessiva, com o intuito de obter informações analíticas objetivando a descoberta de traumas de infância ou adolescência, com a intenção de tirá-lo daquela incômoda e vexatória situação.
Infelizmente, o tiro saiu pela culatra. Depois do tratamento hipnótico, o homem doente já não conseguia mais dormir, estava curado. Mas o quadro havia mudado, agora passava dias e noites acordado, levando-o a perambular pelas ruas da cidade, vinte e quatro horas por dia. Mesmo colocando um tapa-olho, não conseguia dormir, ficando horas e horas deitado em sua velha cama. Às vezes, nem mesmo para fazer as refeições se levantava, passando de “o dono do sono, para o “eterno vigilante”. Só se levantava para fazer suas necessidades fisiológicas.
E assim, adquiriu severo descontrole emocional, passou a engordar. Um mal mais pernicioso que o de dormir exageradamente, comia compulsivamente, advindo a ansiedade, o medo, outro apelido, “o cevado.”