O Distraido
Final da década de 50, Genivando, mais conhecido como Sambiquira nas peladas de rua, estava prestes a completar dezessete anos, quando foi flechado pela primeira vez por Cupido.
Havia semanas que ele passara a olhar com outros olhos a menina que viera trabalhar em sua casa como doméstica. Não que ele esquecesse que ela, com seus treze anos, talvez não fizesse por maldade, quando o deixava entrever, por um ou dois botões desabotoados, seus peitinhos, pequenos e virginais, que já começavam a se fazerem perceber, hirtos e empinados, como a pedirem carinhos; ou quando através de uma maneira ousada de sentar, punha em evidência as roliças coxinhas cobertas por aquele tipo de penugem púberes, que ainda não conhece a afiada face de uma lâmina. Não, ele não esquecera disto. Mas notara que ela também o olhava com outro olhar, bastante diferente daquele cabisbaixo e tímido olhar de menina que conhecera a pouco a agitação da capital. E foi assim, que a atração de dois olhares, com intenções reciprocas, fez crescer as liberdades que ambos se permitiam, embora um tanto limitadas pela constante ameaça da chegada de algum familiar no cômodo em que o destino, com um pouco de ajuda, os faziam encontrar sozinhos.
Mas houve um dia em que o destino trabalhou sozinho. Uma noite, uma sucessão de fatos se sucederam sucessivamente e todos tiveram que sair deixando apenas o pai em companhia dos jovens amantes. Ficaram na sala filho e pai. Este bastante entretido com os amores sintéticos das novelas, não desgrudava os olhos da telinha, enquanto aquele, atento ao ruído de louças sendo lavadas que vinha da cozinha, preocupava-se com o amor natural que lhe queimava o peito como uma chama, a qual, somente aquele corpinho, onde a adolescência acabava de raiar, conseguiria apagar. A cabeça trabalhado a 120, pensa em mil maneiras de fugir àquela precária vigilância. Entre as mil, selecionou a que achou melhor e pôs as mãos a obra. Com a maior naturalidade que a ânsia de sua própria puberdade lhe permitia, levantou-se e diz:
- Vou dar uma voltinha por aí, daqui a pouco volto.
Com as mãos nos bolsos, para não trair seu estado, caminhou até a porta e saiu. Com um suspiro de alívio, corre até ao portão, abre-o mas não passa. Torna a fecha-lo tendo o cuidado de fazer barulho suficiente para ser ouvido da sala. Com passos rápidos e silenciosos, contorna a casa, atravessa o quintal, que esta escuro como asa da graúna, sobe de 3 em 3 degraus a escada que conduz a porta da cozinha e finalmente, vê-se frente a causadora de toda sua audácia.
Na cozinha, a menina ouvindo o barulho da porta da sala e em seguida o rumor de passos no quintal, advinha tudo, de modo que ele, ao chegar a porta, já a encontra pronta para saltar em seus braços.
Entre beijos e afagos, suspiros e carinhos, descem novamente a escada como se estivessem fundidos um ao outro. Atravessam o breu do quintal, e vão sentar nos degraus da escadinha do lado da casa, onde, como alucinados, dão vazão aquela paixão, que apesar de recente, a repreensão a fizera atingir dimensões imensas, como um pequeno córrego que tivesse suas águas barradas por uma represa, e de tanto acumula-las, conseguira uma dia , ter forças para rompe-la, e livres, seguirem seu curso original, mas agora como uma caudaloso rio.
Na sala, o pai espera angustiado o desenlace daquele romance que a mais de quatro semanas havia começado no vídeo de seu televisor, e que mais uma vez é adiado para o próximo capítulo, prometendo muitas emoções para quem tivesse saco de vê-lo. Levanta-se, desliga o aparelho e volta a sentar. O inesperado silêncio que toma conta da sala, o permite rememorar toda a novela, deste o primeiro capítulo. "Mas há algo errado com este completo silêncio", pensa ele em meio ao capítulo sessenta e quatro. "Isto aqui está tranquilo até demais". Dirigiu-se a cozinha com rugas na testa. O pano de prato caído ao chão as multiplica. Chega a porta que esta escancarada e, o som da murmurante refrega, com conjunto com o respirar difícil e descompassado, não lhe deixam dúvidas do que está ocorrendo.
Entregues aos seus desejos e protegidos pela escuridão reinante no local, os jovens estavam um tanto quanto desarrumados no que tange a suas indumentárias. A menina tinha a blusa desabotoada e totalmente aberta, a barra da saia era mantida presa a cintura pelo cós, e no meio das canelas, em lugar pouco comum para uma calcinha, estava a última peça de seu vestuário. O rapaz, com os movimentos tolhidos pelas calças embaraçadas a seus pés e a cueca em seus joelhos, teimava em contrariar a física tentando ocupar no espaço, o mesmo local ocupado pela sua companheira (em certa parte, até que conseguia). Estavam assim quando a luz, bem acima deles, espantou toda a escuridão reinante. Instintivamente, repelem-se e tentam desesperadamente, mas com pouco sucesso, recomporem as vestimentas.
Um segundo após a brutal interrupção, têm diante deles o pai e patrão, que com olhar de quem não esperava tanto, lhes diz com voz alterada pelo espanto:
- O que é que vocês estão fazendo aqui?
Típica pergunta cretina e sem razão de ser, uma vez que a resposta é óbvia. Mas a certas ocasiões em que perguntas como esta são feitas independentemente de nossa vontade, simplesmente porque não há nada a dizer. A pergunta é feita sem o objetivo de obter resposta. Mas nesse caso, ela não se fez por esperar;
- Estávamos apenas comparando as nossas cicatrizes de operação de apendicite, diz corajosamente o rapaz, ainda em luta com os primeiros botões da braguilha.
- Mas você nunca operou de apendicite, seu descarado, diz o pai, lutando para manter a seriedade que a situação reclamava.
- E num é que é mesmo pai, por isso que eu num tava conseguindo encontrar ela.