CRÔNICAS DO TREM: AS MENINAS TRABALHADORAS

Deixou a composição ir, estava lotada mesmo e pretendia ir sentado na viagem. Mal se passaram trinta segundos e a plataforma já parecia um formigueiro de tanta gente, todo mundo com aquela cara de "nem tente pegar meu banco!". O próximo trem era dos novos, onde a ligação entre os vagões era feita por paredes sanfonadas. Já se preparou para disputar seu lugar na junção.

Assim que a porta se abriu foi o empurra de sempre. Se atirou no chão da junção e se encostou na parede maleável desfrutando de pelo menos trinta segundos de espaço antes de uma nova leva de gente o deixasse apertado mesmo ali. Involuntariamente ficou olhando na porta esperando que ela entrasse. Porque a mente se recusa a aceitar o impossível?

Fora talvez a melhor viagem da sua vida, ela se sentou na sua frente e logo puxou assunto:

- “Que os outros se matem para ir sentados nos bancos. Eu prefiro vir aqui, onde vou folgada e ainda ganho uma massagem nas costas.”

Ele riu e a conversa saiu solta, combinando com o balanço dos trilhos e o entardecer. Ela era daquelas mulheres únicas, espontâneas. De formas generosas, usava um decote e uma calça justa e suas poses deixavam claro que ela sabia dos seus atributos e de como usa-los ao seu favor. Cabelo castanho, 30 anos, óculos fundo de garrafa que davam um toque de fragilidade em um conjunto que poderia assustar pela sua opulência.

Balançou a cabeça para afastar a lembrança. Um vampiro, pelo menos os antigos, nunca entrava na casa de alguém sem ser convidado. A ideia por trás disso é que se não se abrir a porta o mal não entra, e ele abriu uma porteira! Antes que ela descesse pegou o telefone e o endereço do trabalho.

Foi um tórrido romance. Maravilhosas tardes em motéis baratos. Até começarem as pequenas cobranças, os ciúmes ridículos (ela da esposa, ele das paqueras dela), a consciência pesada do tempo tirado dos filhos. Como em todos os seus casos a inteligência veio do outro, um belo dia ela mudou de emprego e telefone e sumiu, deixando para trás um coração partido, sangrando e aliviado ao mesmo tempo.

Foi acordado de suas reminiscências por uma jovem risonha que se espremeu no exímio espaço ao seu lado. Não conseguiu ver seu rosto, apenas o da colega que se sentou em frente a ele.

- “Ai amiga, estou gorda. Não consigo fechar a calça. Esta vida de Big Mac não está dando não.”

- “Se você está gorda eu estou o quê? Nesse cantinho que conseguiu não cabe nem minha perna.”

Soltou um suspiro. Iria ser uma longa viagem com aquelas duas falando, suas vozes tinham aquela qualidade da juventude de se sobrepor a tudo, mesmo aos pensamentos alheios. Isso tornava inviável tentar ler o livro de poesias que trazia na mochila, então, a contragosto, deixou-se levar pela corrente de futilidades da conversa entre elas.

Metade da viagem foi uma descrição pormenorizada de quem queria sair com quem e falava mal de quem na unidade do Mac Donald's onde trabalhavam. Como sempre se impressionou com a capacidade das mulheres de observar cada detalhe e deles tirarem um mar de suposições. Enquanto as ouvia ficava divagando de como as moças de hoje em dia já estão adaptadas ao mundo moderno, pois sempre estiveram e exerceram severa vigilância sobre tudo e todos.

Na sua sem cerimonia, a que estava do seu lado comentava como estava jogando charme para o chefe. A amiga contou que ele era casado, o que não pareceu incomodar muito a primeira, que não cansava de dizer que a pobre esposa em questão parecia ser um tremendo jaburu e diziam que havia feito macumba para ficar com ele:

-Você tinha que ver as fotos, menina. A mulher é uma ogra! Se aquilo conseguiu casar eu vou fazer macumba também.

-Credo, tá amarrado! Cobre com teu sangue! Depois você arranja um que te bate ou te trai, quero ver. Essas coisas só pegaram nele porque ele diz que não acredita em Deus.

-É verdade, ele diz que é ateu. Acho que demitiu a Verinha porquê ela ficava pregando os negócios da igreja dela.

Reprimiu uma risada, tentou se virar um pouco para ver o rosto da que estava ao seu lado, sem sucesso. Meu! Só vendo nos outros para poder perceber o próprio ridículo. Adultério pode, feitiçaria não? Ele também era todo cheio de pruridos quanto a estas coisas, fruto da época que foi evangélico, mas igualzinho a jovenzinha sem noção coava um mosquito e deixava passar um elefante.

A conversa mudou para namorados. A que estava na sua frente estava à caça. Analisou-a: uma mulata de rosto bonito, seios grandes e um pouco rechonchuda; dezenove, vinte anos, o dobro da sua idade. Mesmo sem ver a colega podia imaginar que esta seria a menina feia e com personalidade da dupla. Deu um sorriso sacana, sempre gostou mais das amas que das princesas.

A outra estava descrevendo em tediosos detalhes a última briga com o namorado: ele não deu a atenção que ela queria, saiu batendo porta da casa dele, desligou o celular e só voltou para casa tarde da noite. O corninho ligou três vezes e ainda foi na casa dela.

- “Agora estou com dó dele. Tadinho. Mas onde eu vou falar que fiquei a noite inteira?”

- “Fala que ficou lá em casa.”

- “Mas ele mora em frente e você mesmo disse que ele te viu saindo?”

- “Mas me viu voltando com sacolas. Até perguntou de você. Aí é só falar que estava lá dentro, mas estava magoada e não queria falar com ele. Eu confirmo.”

- “Valeu amiga!”

"Você diz a verdade e a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir." Assobiou a música, uma senhora que estava visivelmente irritada com a futilidade reinante deu risada. A valete olhou feio, não entendendo a piada. Será que ela não percebe como se rebaixa? Vivendo a vida através da outra e sendo cúmplice das suas irresponsabilidades. Já tinha ficado claro isso pelo que conseguiu entender de como se relacionavam no trabalho. Era óbvio que era mais inteligente, mas era a outra que ficava no caixa.

Será que ela pensa que a outra saberá ser grata a tanta lealdade? Sua experiência dizia que não, já fora valete e já tivera os seus, a ingratidão que sofreu, cometeu. Até casar, quantas e quantas princesas teve que ficar em baladas justamente porque se interessou pela "amiga feia" e essa foi violentamente jogada para escanteio em um acesso de inveja da outra. Virou uma tática quase patenteada. Será que neste mundo de festas funks ainda funcionaria?

Um marreteiro passou vendendo bala. A "princesa" pediu para que a amiga comprasse para ela e esta aceitou. Nessa para mim deu. Subiu o sangue!

- “Mas isso é que é amiga! Ajuda no trabalho, serve de álibi e ainda dá dinheiro. Pode deixar, moça, não precisa levantar, eu compro. Tenho dinheiro no bolso da camisa.

Nisso começou uma conversa divertida até o fim da linha. Ali ainda teria que pegar outro trem para poder chegar em casa. Quando a composição parou finalmente pode ver o rosto da que estava ao seu lado. Uma moreninha de traços finos, absolutamente linda. Miudinha, mas cheia de curvas. Ela lhe olha tímida, o que a deixou ainda mais sedutora. Por um instante todo um mundo se criou na sua mente. Elas foram com ele até o trem da interligação e entraram no mesmo vagão da outra composição. Sempre conversando e rindo. Ele com os olhos fixos na morena que, envergonhadamente, fazia todo tipo de promessa de sacanagem no olhar recatado.

No último instante, para o assombro delas, desceu e deixou o trem ir embora.

- “Chega de sonhos!”

Diogenes R Cardoso
Enviado por Diogenes R Cardoso em 18/07/2024
Reeditado em 19/07/2024
Código do texto: T8109720
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