Pisando em ovos no escuro
"O conforto é o pior dos vícios!'
Essa foi a primeira frase que Mila Cox ouviu ao entrar no apartamento que dividia com seu parceiro musical Zími.
"Hoje valorizo muito mais a vida que levo e as coisas legais que eu tenho, graças àquele período difícil da minha vida."
Ele conversava com o amigo e vizinho, o multiinstrumentista uruguaio Silvano, que era uma banda de um homem só, e fazia apresentações junto dos Crop Circles, projeto musical de Cox e Zími.
Zími falava sobre o tempo em que viveu em ocupações e pensões decadentes da região central de São Paulo, antes de morar com a parceira musical num apartamento bem mais limpo e organizado.
Ele falava sem parar, e Mila Cox achava que ele e Silvano estavam cheirando pó. Ela achava ridículo que eles fizessem isso na idade em que estavam. Ambos beiravam os cinquenta anos, e ela tinha vinte e um.
Os dois bebiam rum com hortelã e limão.
Silvano preparava os drinks com a mesma euforia que Zími tinha para falar sem parar. O gringo estava usando uma camiseta com a cara do Gil Scott-Heron que ela queria, mas ele comprou antes.
E Zími agora falava sobre como sofria com os banheiros coletivos, e principalmente com quartos compartilhados. Morria de medo que esse período chegasse em sua vida, e chegou tão logo deixou a casa dos pais para se autogerir.
"Eu sei que os ricos são muito piores pra aguentar, mas em qualquer horário que eu entrasse nos quartos sórdidos em que morei, havia um filho da puta dormindo, e eu tinha que me virar sem fazer barulho. Era como pisar em ovos no escuro. No prédio em que eu morava com meus pais, achavam que eu era maloqueiro, e nas pensões e cortiços, pensavam que eu era playboy".
Falava sobre como aquele período serviu de escola para ele, quando aprendeu na prática o valor da privacidade, algo que ele já valorizava enquanto tinha alguma.
Quase chorava ao falar do desconforto em que viveu e sobre o quanto as pessoas com quem conviveu eram clinicamente loucas.
Sobre banhos frios no inverno, banheiros imundos, falta de grana, brigas entre vizinhos, sobre viver um dia de cada vez por falta de alternativa e de qualquer perspectiva de melhora na qualidade de vida.
A falta de privacidade era um fantasma personalizado em pessoas vazias, que também os esvaziavam As exceções eram tão raras quanto os dias felizes daquele período.
Ressaltava a todo momento que muitas vezes sua salvação era saber que tudo podia ficar ainda pior de uma hora para outra. Para ele, isso só seria possível se virasse um morador de rua.
Convivia com vários deles, pois frequentava diariamente as bocas de rango do centro de São Paulo para economizar o dinheiro do almoço. Ainda frequantava esses lugares com Silvano, como medida de economia e para não se aburguesarem.
Ele falava sobre medo, e sobre como a coragem significa resistência ao medo, e não a ausência dele.
Era um período em que Zími havia deixado a música de lado, numa pausa que pensava ser definitiva.
Ele se dizia impressionado com o quanto a religião era presente naqueles lugares. E não podia falar muito sobre o que pensava sobre o assunto.
Nas pensões, não dizia a ninguém que era ateu, só para não criar polêmica.
Nesse momento, Silvano fez uma rara intervenção:
"Não nos deixar cair em tentação é o mesmo que não nos deixar ver quem realmente somos."
E Zími prosseguiu, dizendo que as pessoas agiam de forma antagônica ao que pregavam.
"O que tornou a história tão violenta foi a fé nas convicções, e não o conflito de opiniões."- falou.
Mila Cox o deixava falar. Ela gostava de ouvir o que ele dizia quando Zími parecia uma metralhadora. Não era exatamente pelo que ele falava, mas pelo modo como o fazia.
Naquele dia, ela simplesmente gravou o que ele dizia, para depois usar algumas partes em letras de música.
Depois comentou com ele sobre um cara da vizinhança que conhecia os Crop Circles, e que percebeu a influência do Suicide na música que eles faziam.
"Deve ser um coroa, só por saber que o Suicide existe."- falou Zími.
"Sim, ele tem mais ou menos a sua idade."- Respondeu Cox.
"Um coroa com bom gosto musical e algum conhecimento. A maioria desses velhos não sabe nada, só ouve esses sucessos instantâneos horrorosos do momento, ou música antiga grosseira, sexista e machista."- disse Zími.
"Mas isso vale pra qualquer idade!"- ela respondeu.
"Sim, por isso nossa vida social é restrita a quem tem o mínimo de decência. Uma andorinha só não faz verão, mas voa sozinha. Tem que ter paciência pra encontrar outra andorinha com cérebro, e aí fazer algo decente pra um dia ser lembrado na lápide. A minha vida pregressa à formação dos Crop Circles é o exemplo disso."- ele falou, e agora olhando diretamente para Mila Cox, acrescentou: "Se eu não te conhecesse, apenas a visse no metrô durante uma viagem de quinze minutos, talvez pensaria que você é fria e distante, quando na realidade você é seletiva, pois sabe o trabalho que dá a companhia de uma pessoa não apropriada. O sossego pode sumir, e nenhum prejuízo é maior do que esse. Ter logo tomado conhecimento de que o disco da sua vida é 'Radio Ethiopia' também ajudou a saber melhor sobre você."
Agora Mila Cox reparou que Zími vestia uma camiseta do Killing Joke que ela ainda não tinha visto. Já estava gasta e tinha um furo de brasa de baseado.
Eles estavam com o computador ligado e havia na tela uma foto do Trump com o curativo na orelha, e Mila Cox começou a imaginar o quão grotescas devem ter sido as piadas que eles fizeram antes dela chegar.