Cão Perdido tem Dono
— Qual foi moleque?! Tá vendo aquela dali? Tá olhando para cá DI-RE-TO mermão!
Quem? Aquela tia?
— Tia é o caralho! Se ficar dando mole eu passo o cerol!
Na saída da missa, não era para Jorge que Conceição lançava seus olhares faminto-discretos, era para todos os homens, rapazes e garotos que trabalhavam na feira livre. Frequentava religiosamente todas as manhãs as celebrações da paróquia de Santo Antônio, no Centro. Em frente à igreja, a praça, e nela organizava-se a feira que tanto atraia a sua atenção.
Sonhava em se casar. Antes, comungava na igreja de São Benedito dos Pretos Pobres. Como eu disse, isto foi antes. Quando ainda acreditava na espontaneidade do destino, nas forças do acaso, nos seus atributos físicos e na sua capacidade de encontrar um par por conta própria. O tempo foi passando e nada acontecia, resolveu agir, foi atrás de especialista, quem pudesse interceder efetivamente com a sua causa: o casamenteiro.
Fez novena, seguiu procissão, acendeu vela de sete dias, o pôs de castigo, comeu do bolo, fez promessa. Ansiosa por milagre, sua encomenda divina, passava horas olhando aquela gente, sempre atenta, aguardando o presente que o Senhor certamente traria para ela embrulhado em um par de calças.
Sem o alerta do amigo experimentado nas artes da carne, Jorge, talvez, jamais teria notado a presença sedenta da pobre beata. Conceição tentava ser discreta, em vão, simulava encantar-se com o horizonte que terminava do outro lado da avenida, tentava demostrar interesse em qualquer elemento da paisagem urbana, com as brevidades da praça, impossível disfarçar. Não havia como ocultar tamanho libido, tanto desejo.
Há muito sonhava com o matrimonio, desde que sua prima Dorinha se casou com o Bento, o estivador. Jurava que, graças aos seus parcos dotes físicos e sua timidez elevada, Dorinha nunca arranjaria um marido. Casou-se de véu e grinalda com um homem alto, forte e bronzeado. Começou de repente a desejar a mesma sorte, afinal possuía, acreditava ela, o que era necessário para atrair o homem que quisesse e, não havia feito isso, até o momento, porque não era de seu interesse. Sempre muito preocupada com os afazeres da casa, nos cuidados médicos com sua mãe acamada, nas obrigações religiosas, tantas, que não pensava em homem e nem se sentia sozinha. As coisas mudaram.
Queria um homem, não de qualquer jeito, assim não. Para ela, a única forma aceitável de resolver essa questão, dar permissões ao seu desejo, era oficializando um contrato. Queria um homem só seu com papel passado e selado em cartório, beijo dado diante de um altar, sob consentimento da igreja e as bênçãos de Deus.
Andava doida para casar, enganava-se, dizia para si que qualquer homem servia desde que fosse de bom grado: honesto e trabalhador. Mentira! Encantava-se fácil com aqueles de braços largo e fortes, gostava dos tatuados, dos de bigode fino, daqueles que brilham no Sol que arde queimando a pele, salgados do suor do trabalho árduo. Queria um estivador que a suspendesse do chão, a transportasse nos ombros e, como uma saca de café, a jogasse na cama e fizesse o que bem entendesse. Queria um homem de mãos calejadas de pegar no pesado, de carregar cimento, de virar concreto, dos que trabalham na feira puxando seus carrinhos pesados, transportando caixas enormes como se não pesassem nada. Sonhava com rapazes na flor da idade, dos que correm atrás de bola, que andam sorrindo, que frequentam rodas de samba, dos que dormem nas ruas.
Jorge, apesar de seu tamanho e força, era menino ainda, pouca idade e muita inocência apesar de tudo o que viu e fez. Sempre sorrindo, sempre animado com alguma música que ouviu, com a rodada do campeonato de futebol, com uma entrega que faria puxando seu carrinho de madeira pelos corredores estreitos da feira, pelas calçadas de pedra, serpenteando as ruas do Centro. Sonhava com gorjeta alta, com almoçar costela no bar do Português, com Coca-Cola gelada. Aos dezesseis não pensava em mulher, não era o que sentia falta, de longe uma prioridade. Queria sair das ruas, ter uma casa: cama e geladeira cheia, sonhava em abrir uma geladeira.
A única mulher que queria ter era a sua mãe, mas esta, foi-se embora muito cedo, caiu da ponte e foi levada pela correnteza, nunca apareceu. Foi criado por madrinha. Para Jorge, a pior desgraça que pode existir nesse mundo atende pelo nome de madrinha. Assim que deu pé, preferiu morar na rua.
Quando saiu de casa, já faz muito tempo, não foi fugido, saiu pela porta da frente, sem brigas. Fez um teste: passou o dia todo na rua, pediu esmola, revirou lixo, ficou andando com os meninos da praça, esperou que alguém notasse a sua falta, viesse atrás. Ninguém veio. Junto aos moleques que conheceu, dormiu na marquise da Nossa Senhora da Conceição e lá quase morreu de frio deitado na pedra tentando se agasalhar com papelão.
De amizade fácil, desenrolado no falar, esperto e atento, não demorou nada para se adaptar. O tempo passou e nada de virem atrás dele: uma semana e nada, foi-se um mês e ninguém perguntando por ele, cinco anos se passaram e agora um rapaz feito, dono da própria vida, capaz de se virar muito bem sozinho.
Uma vez, logo nos primeiros meses, em frente ao mercado municipal, a madrinha passou ao seu lado. Hora do almoço, dia quente de verão, morrendo de fome, por um momento seus olhos se encontraram, ela fingiu não ter visto. Jorge ficou em silencio, de cabeça baixa, assentou-se no passeio público e, involuntariamente chorou, definitivamente só.
Sozinho com seus camaradas cresceu adaptado as adversidades, desenrolado com os problemas práticos, sabedor das malandragens do cotidiano, apto para o fim do mundo. Mantinha-se longe de tudo que considerava ilícito. Considerando a maleabilidade e necessidade de adaptação das regras às necessidades urbanas básicas de quem mora na rua, o que é licito ou não pode ter significados diferentes. Para Jorge, qualquer coisa que pudesse deixa-lo doidão, fora do juízo, vulnerável, propenso a fazer merda ou ser recolhido pelo juizado era considerado ilícito, crime e contravenção: ficava o mais longe possível.
— Chega aí menor, dá um pega aqui. — Ih já é, tô de boa! Tenho que ir ali. — Ih qual foi?! Fazer desfeita?! — Obrigadão, mas tenho que ir. E ia embora.
Não frequentou a escola, não sabia ler nem escrever. Sempre detestou as atividades de mendicância, acharcar pedestres, para ele, sempre foi motivo de vergonha, de acabrunhamento. Só o fazia quando não tinha jeito, precisava comer. Aprendeu logo a desenvolver atividades laborais de rua: catar latinha, juntar papelão, garrafas, caixotes, vender bala, levar recado, carregar de um tudo na feira. Achou um carrinho no lixo, pôs para funcionar e profissionalizou-se: virou carregador, burro sem rabo.
Nunca havia notado a senhora de vestido florido, sempre de pé no portão da igreja, observando a paisagem. Jorge não sabe o porquê, mas Conceição lembrava algo de sua finada mãe, o que conotava certa simpatia aquela mulher. Passou diante dela duas vezes transportando seu carrinho carregado de caixas, na terceira viagem, notou que o olhava diretamente, então a deu seu melhor sorriso acompanhado de um bom dia moça! O pequeno gesto do rapaz foi o suficiente para quase explodir o coração da jovem senhora.
Conceição ganhou o dia.