ELA É TÃO LINDA
ELA É TÃO LINDA
Otelo foi um tolo ao cair na armadilha suja do ciúme, ele mata Desdêmona porque se deixa levar pelas intrigas incríveis de Iago.
Ora, ora, então que seja a máxima literal: ou o ciúme mata ou deixa-o doente em estágio terminal.
Janeiro de 1999, quando cheguei ao Hospital em que trabalhava fui barrado na porta por um policial.
-O que aconteceu? – perguntei ao policial que me barrou.
Ele estava me ignorando, olhei para um lado e outro e repeti a pergunta, o policial, metro e setenta, magro, bigode fino e amarelo de nicotina, lentamente ascendeu um cigarro, soltou a fumaça e só depois olhou pra mim e falou:
-Um comédia ai, atirou na esposa, encontramos ele agarrado nela, lambuzado de sangue, passando a mão na face dela como se ela estivesse viva, chorando e resmungava tempo todo: ”você é tão linda”, - o policial coçou a cabeça e completou - um sujeito forte pra cacete, foi difícil algemar e tirar de cima da moça, cena terrível de ver.
O policial me olhou nos olhos jogou o cigarro fora, perguntou o que eu estava querendo ali. Disse que era médico, ele cuspiu no chão, ajeitou o cinto da calça e falou que foi um médico mesmo que matou a mulher e que eu desse meia volta até que a polícia liberasse o local.
-Pode me dizer o nome? - perguntei.
-Otelo “não sei de que” já está preso na DHPP.
Eu conhecia Otelo desde moleque correndo atrás da bola no colégio Nacional, filho de policiais ralou muito para passar no vestibular.
A verdade é que um homem preto na federal de medicina em 1989 era raro e Otelo pagou caro por isso, muitos confundiam Otelo como o cara da limpeza, ou o sujeito da maca, você podia perceber os olhares dos professores, racismo estruturado que algumas pessoas dizem que não existe, existe sim e vi de perto.
Mesmo temeroso dei um pulo na delegacia, Otelo estava de cabeça baixa, algemado em um banco esperando o advogado, um policial gente boa me disse: “cinco minutos”.
-Que loucura é essa? - falei ainda sem fôlego.
-Ela estava me traindo… Dei a minha vida pra ela, ela tirou a minha e eu tirei a dela.
Otelo contou tudo bem devagar como se não ligasse mais pra nada.
“Eu achei presentes do amante, coisa que nunca vi lá em casa, um relógio, uma pulseira, um livro, o tal do livro ela não me escondeu, só falava nele, que era muito bom, que o autor era muito sentimental, etc, etc”.
“Perguntei pra ela:”
“Marta, todo mundo que vai para o diabo de uma igreja rezar pra Deus dá livrinho para o outro?”
“Rasguei aquele livro idiota e falei que se aparecesse mais um eu rasgava, o problema é que ela ficou em silêncio, triste, então comprei outro igual, porque ela simplesmente me ignorava.”
Fez uma pausa e pediu que pegasse um pouco de água, depois continuou.
“Irmão, eu não conseguia mais ficar longe, porque tinha medo dela estar com ele, então eu deixava o hospital e ia até o trabalho dela, ia na igreja, no salão de beleza, até que um dia encontrei os dois em um café, foi lá que explodi pra valer, eu chamei a minha Marta dos piores nomes e ela chorou, ela disse que eu estava enganado sobre ela, que ela também havia se enganado em relação a minha pessoa.”
“Eu perguntei se ela estava tendo relações sexuais com aquele homem, não falei dessa forma educada, falei da forma chula, grosseira, de uma forma que nunca tinha falado com ela.”
“Marta me olhou dentro da alma e falou: que é isso Otelo? Acha que eu sou alguma doida, lembra que te falo todo dia que te amo, se falar assim comigo de novo saio pela porta e não volto mais! - ela disse com tanta convicção, que me deu medo…”
A beleza é simetria, e Marta era incalculavelmente simétrica, muito difícil não ficar impressionado no primeiro olhar, a estética não manda recado por caminhos racionais para cérebro humano, às vezes ela queima em uma pessoa como se fosse fogo, outras ela esfria, nunca é simples ou comum, pode, como aconteceu com a Marta levar a morte– pensei.
Otelo ficou pálido, continuou a falar sem levar em consideração a minha presença.
“Assim o amor aperta o peito, te deixa sem saída, aquela mulher era o meu oxigênio, pensava nela o dia inteiro, nunca parava de ver aquelas fotos, fotos dela, nossas fotos, e só de imaginar que aquele candidato a pastor magricela, bombeiro de merda, varapau, estava colocando as mãos sujas na minha mulher a raiva tomava conta, foi então que peguei uma arma na coleção de armas do meu pai.”
Ele balançou a cabeça em negação.
“Sempre odiei aquela coleção e briguei muitas vezes com meu pai por conta da violência que aquelas armas representavam, ironia, eu estava certo, se as armas não existissem eu não saberia onde encontrar.”
Desculpas idiotas para comportamentos complexos, ele mataria Marta com as mão se as armas não existissem.
Otelo continuou a falar, a voz estava embargada, lenta, distante.
“Naturalizei o fato de andar armado, era o meu segredo. Eu e Marta já discutíamos quase todo dia, eu sabia que ela chorava no banheiro.”
“Um dia encontrei ele na portaria do meu prédio, o cabra estava com flores na mão, flores amarelas, as preferidas dela, olhei de longe, uma mudança ocorreu em mim, senti alívio, conclui que não havia mais dúvida”– ele começou a chorar.
“Você já sabe do resto, quando dei por mim um policial me segurava e me puxava para longe dela, uma vizinha chamou a polícia” - ele disse e fechou os olhos, não havia mais nada a escutar.
Coloquei a mão no ombro dele e me despedi para sempre, alguém me perguntou se ela mereceu, se ela traia ou não, não sei se isso é relevante, ninguém é protegido do excesso, alguma coisa no casamento dos dois já não funcionava.
O que fez Otelo matar não foi o amor e sim a raiva.
O trágico Otelo shakespeariano, arrependido pela monstruosa injustiça que acaba de cometer com Desdêmona, enterra um punhal no seu corpo, beija Desdêmona pela última vez e morre, na vida real ele vai preso, solto em seis anos, livre ele vai viver a sua vidinha.