O jovem e seu cachorro caramelo (Ou Morador de rua e seu vira-lata caramelo)
Todos os dias eu passava andando até a estação de metrô indo para o trabalho e via aquele homem jovem morando na rua, estava perto de uma carroça com uma expressão simpática grudado ao seu cachorro vira-lata caramelo, grande, dócil, muito carinhoso com seu dono e com quem aos poucos ganhava sua confiança.
Eu ficava imaginando o que podia ter acontecido na vida daquele jovem para ele ter ido morar na rua, com uma carroça pesada de madeira e um amigo de patas. Para meu espanto ele estava sempre com uma expressão sorridente no rosto e brincava com carinho com seu companheiro caramelo.
Eu passava apressada e dizia: Bom dia. Ele me olhava e respondia: Bom dia, moça!
Aos poucos fui me aproximando também do cachorro que estava bem cuidado, tinha pelo sedoso e era castrado. No início ele era desconfiado, mas com jeitinho fiz amizade com o o Leão e descobri que o nome do rapaz era Thayde.
Depois desse dia comecei a carregar na minha mochila alguns biscoitos para dar para o doce gigante de patas. Era uma estratégia aos poucos quem sabe conquistar a confiança do grandão. Thayde não falava muito. Eu não perguntava a respeito da sua história imaginando que suas memórias deviam ser dolorosas. Eu queria saber se ele precisava de algo, se estava alimentado, se necessitava de algum medicamento e se ele tinha ração para dar para seu parceiro e único ser que ele considerava como sendo sua família.
Ele respondia calmamente que tinha tomado café, que recebia ajuda dos moradores e comerciantes e que o Leão era muito querido, comia ração de qualidade e tinha um padrinho.
Meu coração ficou menos aflito ao saber que os dois recebiam alimentos, cobertores e garrafas de água mineral. Ele recolhia latinhas de alumínio que encontrava pelas ruas e vendia, o lucro era muito pouco. Ele e o Leão não andavam para muito longe porque as poucas roupas e objetos que ele tinha estavam naquela carroça improvisada feita com restos de madeira. Os motoristas do ponto de táxi,que ficava perto dali, cuidavam de longe das coisas dele, mas Thayde ficava receoso mesmo assim.
Algumas vezes no fim da tarde o via alcoolizado. Como suportar viver nas ruas ? Eu não o julgava. Ele devia comprar uma dose de bebida com o pouco dinheiro da venda das latas e assim ele “apagava” e dormia a noite toda abraçado com o Leão, que estava sempre escovado e usava coleira anti-pulgas, mimos que uma vizinha deu para ele. Leão tinha fãs, madrinhas e padrinhos, eu soube depois. Eram eles quem garantiam as roupinhas no inverno além de petiscos. Sim, Leão era mimado. Que bom.
Comecei a passar sempre por ali tanto indo para o trabalho, como nos dias de folga para ver como estavam os dois. Nem sempre eu os encontrava por lá, mas aos poucos fiz amizade com uma moradora dali que me dava notícias, muito simpática ela guardava doações para eles e vigiava de longe a a tal carroça, que era também uma cabana improvisada para acolhe los nos dias mais frios. Dona Sá, como ela gostava de ser chamada, era aposentada e passava o tempo todo em casa, um lugar pequeno, confortável, que era sua paixão. Morava no bairro há décadas e não pretendia mudar se. Muito gentil ela comentou que ficava contente por me ver passando ali preocupada com o bem-estar dos dois amigos dela, sim , ela gostava muito do ser humano e do cachorro.
Dona Sá fazia um café delicioso, o perfume chegava na calçada. Eu passava ali e sentia o cheiro que me fazia salivar. Ela sempre sorridente usava vestido, cabelo grisalho cortado na altura do queixo, olhos pintados delicadamente com rímel e lápis , um belo batom, e muitas pulseiras coloridas , eu a via sempre regando um dos seus muitos vasinhos de planta no estreiro quintal.
Para minha surpresa ela me viu e me convidou para entrar e tomar um café. Eu havia passado pela estação voltando para casa, depois do trabalho, não encontrei os meus amigos que deviam estar andarilhando. Tinha levado comigo um remédio veterinário para o Leão e deixei com Dona Sá. Além do café ela havia feito deliciosos bolinhos de chuva. Em casa minha saudosa avó fazia esses bolinhos em dia nublados com café quentinho, uma mistura perfeita. Acionou na hora mimha memória afetiva de uma época especial da minha infância. Eu adorava tomar lanche antes de sentar para estudar por horas. Bolinho de chuva é minha Madeleine.
Dona Sá me contou que morava no bairro desde criança e que por isso conhecia bem as histórias das pessoas da região. Para minha surpresa ela afirmou que a família do Thayde morava perto dali e tinha boas condições financeiras.
Vendo minha expressão de espanto ela continuou contando que algumas pessoas do bairro sabiam que ele tinha família que possuía uma casa velha em um enorme terreno desde que o bairro era apenas um projeto e ainda não tinha nada, e que foi morar na rua depois de brigar com seus familiares que por conta de herança deixada pela mãe dele. Ela disse que Thayde contava que ficou muito revoltado com a ganância de seus familiares e não aguentando mais tanta briga resolveu, por desgosto, morar na rua.
Depois de um tempo ele adotou o cachorro que foi abandonado por ali, de modo cruel, em uma tarde fria. Foi um encontro de almas.
Thayde era um homem jovem que havia sofrido muito. Na casa ele sofria violência física e verbal de seus familiares. Emocionalmente mais frágil ele preferiu largar tudo e morar perto da estação de metrô onde ele aos poucos, ao longo dos anos, fez amizades e tinha companhia.
Dona Sá contou que a saúde mental do seu amigo estava muito abalada, e que outros moradores do bairro, seus colegas, sempre que possível, o levavam para tomar banho na igreja, onde ele ganhava roupas e sapatos. Alimento nunca faltou para os dois. Quem olha a crueza de uma cidade como São Paulo e quantidade de carros que passam ali perto na Radial Leste nunca poderão imaginar que existem pessoas solidárias, que os vizinhos se ajudam, que os que não têm muito são aqueles que dividem e que as pessoas ainda são humanas.
Dona Sá era uma senhora fofa. Daquelas que têm fala mansa, brilho nos olhos, vitalidade e a certeza que para tudo se dá um jeito, mesmo que dinheiro não sobre na carteira quando o mês chega ao fim.
Uma veterinária da região havia feito exames no Leão e ele foi levado de carona para castração numa clínica “ para no futuro não ter câncer de próstata” disse a tal médica.
Fiquei encantada. Eu sentia gratidão por pessoas que eu desconhecia.
Uma outra mulher presenteava o Leão com banho em uma loja da região, ela deixava pago o serviço e combinado com o dono do lugar que conhecia os dois e ia buscar e levar o cachorrão de táxi dog.
Ali, no trecho que dona Sá mora, pelo que notei ainda existe vizinhança unida como cidade do interior dos nossos sonhos. Um sabe o nome do outro, eles se conversam, quando possível se ajudam e assim a vida que pode ser áspera fica menos difícil.
Laços de sangue, em muitos casos, não são os mais importantes. Thayde é prova viva disso.
Dona Sá percebeu no meu rosto uma expressão de surpresa e olhando nos meus olhos disse algo com o qual eu concordo cem por cento e nunca me esquecerei:
"- Escute, Catarina. A melhor família, em muitos casos, são os amigos que escolhemos ao longo da vida. "