Morgana
Na rede(anti) social de fotos todos parecem tão bem, ricos, lindas, com familiares perfeitos, no prato a comida é balanceada, nutritiva, os filhos e filhas educados, o rosto não tem rugas, o trabalho paga bem, os zilhares de amigos são legais, eles não têm que conviver com colegas chatos, são seus próprios chefes, suas roupas são de grife. Na vida deles o importante é valorizar o "simples".
Entenda por "simples" estar num domingo de sol numa piscina de um hotel, cuja diária custa vários salários mínimos , usando roupa de banho da grife do momento e comendo um cardápio elaborado por um renomado chefe de cozinha.
A grama do vizinho parece mais verde quando vista de longe. A questão é que a tal grama pode ser sintética.
Vendo apenas fragmentos da realidade pela tela do celular parecem tão bonitos, bem alimentados, felizes, com dinheiro sobrando e relações afetivas satisfatórias.
Na vida off-line não é isso que eu ouço, vejo e acompanho aqui no consultório onde atendo pacientes há quase uma década.
Depois da pandemia tenho muitos pacientes que optaram pelo atendimento remoto, são brasileiros que moram em outros estados ou no exterior . Atualmente continuo atendendo presencialmente porque nada substitui, para mim, o contato humano para aqueles que moram aqui na cidade.
São Paulo é um caos frenético, insuportável e delicioso. Meu consultório fica bem perto da estação de metrô Saúde. Por isso também minha agenda vive lotada e agora tenho (que chique) lista de espera de pacientes indicados e que querem ser atendidos por mim.
Nessa sociedade doente e adoecedora escuto muito, pessoas de todas as idades, reclamando que ninguém quer se entregar, se apaixonar, ter laços, compromisso, amar ou se apegar .
Todos contam socialmente que na cama fodem muito. Desconfio, de leve, que na verdade elas e eles estão muito fodidos.
Meu abraço afetuoso no fim da sessão, minha formação humanista, meu olhar atento, o meu "conte sempre comigo, você não está sozinha(o)" ou "pode me mandar mensagem se precisar" noto que faz diferença.
Acredito no potencial do ser humano de achar soluções e resolver conflitos, ou pelo menos achar um meio de amenizar algo que não tem solução nessa sociedade complexa que vivemos.
Depois da pandemia de Covid a conversa presencial ganhou outro sabor, o abraço uma importância especial, o contato nem que seja para um breve papo e café é quase uma declaração de amor.
Até as conversas remotas, via chamada de vídeo, para aqueles que moram longe do meu consultório, parecem um chamego na alma. Talvez a carência humana esteja tão profunda que um simples "bom dia", um "tudo bem com você " traga leveza para o outro. Ser ouvido é uma raridade. Na terapia o paciente também SE escuta. Isso é precioso.
Pessoas brutalizadas se iludem achando que tempo é dinheiro. Balela. Tempo é algo precioso demais.
Tempo é VIDA!
Vida tem valor , não tem preço.
Vida é a oportunidade de conviver com nossos avós, de gargalhar com uma amiga gaiteira, de ir ao parque ou tomar um sorvete, de brincar com as crianças da família, de curtir um cachorro fofo, um ser que tem uma vida tão breve (até 15 anos, em média) ou brincar com um gato. Coisas que não podem ser mensuradas são as que enchem nossa vida de sentido.
Quero atender minhas e meus pacientes adolescentes e adultos até meu último dia de vida. Espero viver muitos anos com saúde. Quero ficar bem velhinha. Minha família é longeva e tem problemas e questões como todas as outras. Meus pais idosos, casados há mais de cinquenta anos, estão velhos e demandam atenção, acompanhamento em consultas médicas e exames, compra de remédios. Eles são aposentados, tem uma casa modesta, o dinheiro deles não sobra, e eles podem contar comigo, meus dois irmãos são ausentes, coisa típica de uma sociedade que não cobra dos meninos e depois dos homens o compromisso com o cuidado. Meus irmãos são casados, assim como eu, alegam que não sobra tempo para visitar e nem cuidar dos pais que também são deles. Adultos arrumam tempo para aquilo que é prioridade, acredito eu.
Em 2020 meu medo era que meus pais pegassem Covid e morressem. Se um deles pegasse e falecesse o outro, acredito, não suportaria levar a vida sozinho. Até o início da vacinação eu vivi momentos de muita aflição, vendo meus pais de longe, indo até a casa deles e conversando sem me aproximar, sem dar um abraço, um beijo. Eu vinha atender meus pacientes com o coração dilacerado. Procurava estar totalmente focada e disponível para ouvir cada chamada e vídeo mas meu peito doía, eu tive pacientes que estavam com familiares doentes, entubados, sem poder visitá los. Ouvi los era gatilho para tudo o que eu mais temia que acontecesse na minha família.
Eu não dormia bem e tive insônia durante várias madrugadas, mesmo assim precisava estar disposta, manter minha agenda, havia contas para pagar e ninguém podia afirmar com certeza quando a situação seria resolvida.
Muitas vezes eu tive que passar uma maquiagem no rosto, um produto para disfarçar as olheiras, tomar umas doses a mais de café bem quente pela manhã e ouvir relatos de quem precisava de mim, da minha escuta plena, da minha visão humanista, do meu apoio virtual. Alguns brasileiros que estavam morando em outro país começaram a fazer terapia pela primeira vez na vida naquele 2020 tão turbulento e seguem até hoje sendo meus pacientes.
Me traz alegria saber que escolhi uma profissão que serve para auxiliar outro ser humano, acredito no potencial de todas as pessoas de buscar saídas e criar redes de apoio, o abraço, agora que estamos vacinados, voltou a ser uma prova de carinho, e as visitas e o olhar atento, demonstrações de cuidado.
Não sei o que esperar do futuro, lendo sobre o desenvolvimento de ferramentas que usam inteligência artificial muita coisa pode mudar na nossa rotina, mas eu continuarei acreditando no potencial humano e praticando na minha profissão tudo que aprendi lendo meu "mestre humanista", karl Rogers.