FARTURA

- Bom dia, meu compadre. Sou eu, Chiquinho de Dé.

Olhe meu compadre eu estou ligando para me justificar com o senhor, porque não pude ir ontem na festa do batizado do seu neto.

É que eu passei ontem o dia todo no trono feito o rei da Inglaterra.

Eu já estou melhorzinho depois que tomei um chá de folha de goiaba que Maria fez para mim e eu tomei com as bolachas soda da padaria de Biu Justino, que é a melhor bolacha que tem no meio do mundo e o cabra não consegue comer menos de meio quilo de cada vez não.

Mas ainda não estou bom de tudo não, ainda tem uns troços remoendo aqui por dentro da barriga.

Olhe, eu me queixo de umas carambolas que comi no sábado de noite quando cheguei em casa.

Elas estavam dentro da geladeira com aquela cara de – me coma – aí o senhor me conhece, sabe que eu não resisto a um pedido desses e depois de beber a água gelada feito o cão dos infernos, comi duas ou três, das grandes.

Estavam maduras, geladinhas, uma delícia irresistível, mas eu acho que uma delas estava bichada pela mosca da fruta, porque logo depois que eu me deitei, senti um embrulho no estômago, mas já estava deitado, não quis ir tomar um sal de frutas, que eu tenho em casa bastante desses; bicarbonato, engov, epocler, omeprazol, estomazil, esses troços, mas o senhor sabe como é velho, né? depois que se deita é um sacrifício para se levantar.

É, foi na sexta-feira logo cedo. Honório, marchante, passou aqui em casa para nós irmos na fazenda do meu compadre Major Euclides que ele queria ver a boiada antes de negociar o preço da compra.

Como a gente ia voltar em cima dos pés, deixei a caminhonete em casa e fomos naquele caminhão misto de cabine dupla que Honório transporta o pessoal da feira.

Quando chegamos o café estava servido e comadre Ceça, quando a gente entrou, disse que era para todo mundo sentar para comer, porque não se faz negócio com a barriga vazia.

E o senhor, meu compadre, sabe como a comadre Ceça sabe cativar qualquer um pela boca.

Para abrir os caminhos eu comi uma terrina de coalhada, depois foi cuscuz ensopado com leite, banana comprida com manteiga de garrafa, uma fatia grossa de bolo de fubá, outra de bolo de mandioca com queijo de coalho assado na brasa, depois banana frita na manteiga e um caneco grande de leite pingado.

Eu não gosto muito de café não, mas o leite pingado é bom demais.

Aí depois do estômago forrado, fomos ver o gado.

Tinha um cacho de banana nanica pendurada no curral, aí nós comemos ele quase todo.

Quando voltamos para a casa da sede, já estava beirando o meio dia.

Aí Honório marchante, me chamou, vamos compadre que eu preciso acertar com o abatedor que já deve estar me esperando lá no bar de Tonha.

Aí começamos as despedidas.

Aí, comadre Ceça disse: ah, não senhor! Eu não posso impedir que seu Honório marchante vá para o compromisso dele, mas o senhor compadre Chiquinho não vai me fazer a desfeita de sair da minha casa na hora do almoço sem ter almoçado. Quando o senhor quiser ir embora o Major, meu marido, manda lhe levar.

Eu não podia me negar, né não meu compadre?

Aí ficamos na varanda, tomando um deforete, até que ela disse, o almoço está servido.

Meu compadre, fazia gosto de ver as comidas em cima da mesa.

Tinha buchada de bode, eu sou doido por buchada de bode, tinha sarapatel, galinha de cabidela, feijão chocha bunda, arroz vermelho, pirão mexido, bode assado, linguiça feita em casa com farofa de manteiga.

Eu não nego não, meu compadre.

Comi, comi de tudo como gente grande acompanhado com refresco de uvaia que está em plena safra.

Aí depois do almoço fomos fumar na varanda, comadre Ceça trouxe doce de leite de caroço.

Eu sou doido por doce de leite de caroço, principalmente quando ele ainda está quentinho.

Comi logo duas taças pela boca.

Pelo meio da tarde, aquela menina que trabalha na fazenda trouxe uma cuia cheia de tanajuras fritas com farofa de manteiga para a gente distrair os dentes e uma quartinha de água do pote.

Quando foi na boquinha da noite, meu compadre Major Euclides disse: - olhe Chiquinho, já está anoitecendo, fique para ir amanhã, a gente tem tanto o que conversar, é tão raro o senhor vir por aqui e eu não tenho tempo de ir na rua...

O senhor meu compadre, sabe como eu sou, sou capaz de dar uma boiada por uma boa conversa, aí fui ficando até que comadre Ceça avisou que a ceia estava servida.

Aí eu comi de tudo.

Angu com a sobra da galinha de cabidela que tinha sobrado do almoço, sarapatel com cuscuz, bolo de milho daquele molhadinho com raspa de tacho de queijo manteiga por cima, bolo de mandioca puba com manteiga de garrafa e dois ou três canecos de leite pingado.

Ficamos conversando na varanda até tarde mais das horas quando começou a soprar uma cruviana de arrepiar os ossos, nós entramos e para não ir dormir de estômago vazio, comemos uma tigela de arroz doce e tomamos um caneco de leite quente com bolinhos de goma.

No sábado, logo cedo, fomos no curral tomar leite mugido, que eu sou doido por leite mugido, e quando voltamos para casa, o café estava serviço. Tomei logo dois pratos de coalhada com rapadura picada e como na véspera, na sexta-feira, eu comi de tudo que tinha e mais munguzá e pamonha.

Depois fomos para a varanda para terminar a conversa interrompida pelo sono até que comadre Ceça avisou que o almoço estava servido.

Tinha mocotó de boi com pirão mexido, dobradinha com feijão branco, costeleta de porco, marrã assada na grelha, feijão preto com todos os entulhos.

Só não comi da salada de alface porque eu não sou coelho para comer folha.

Aí quando foi umas três horas da tarde, eu disse ao Major que ele não precisava me trazer até em casa não, bastava mandar o menino me deixar no ponto das bestas que eu pegava uma e vinha embora.

Eu fiz de conta que não queria, mas Comadre Ceça insistiu e trouxe uma cesta com tijolo de doce de leite e outro de cafofa de umbu, mais um pote de doce de jaca em calda e rapadura da safra desse ano.

Quando chegamos no ponto das bestas, aquele menino zarolho estava vendendo milho assado.

Eu não resisto a milho verde assado na brasa, aí comi duas espigas enquanto esperava os passageiros para encher a besta. Quando desci na praça da Matriz, eu nem tinha visto ela, mas aquela negra baiana da cocada chegou na minha frente e disse – reservei para o senhor porque eu sei que o senhor gosta da cocada quando fica pegada no fundo da panela. O senhor, meu compadre, sabe que eu sou doido por cocada quase queimada.

Aí eu vim para casa comendo o pacote. Tinha umas quatro ou seis cocadas e eu comi todas elas porque estavam uma delícia com aquele gosto azedinho do fundo da panela, aí eu fui beber a água para acabar de descer os taquinhos do bagaço de coco que ficam pregados nos dentes, foi quando eu vi as carambolas.

Olhe meu compadre, eu só posso me queixar delas, porque carambola é fruta que passarinho não come...

GLOSSÁRIO

Arroz vermelho = Oryza sativa

Banana nanica = Musa paradisíaca; M. acuminata “Dwarf Cavendish”

Besta – micro ônibus da Kia Motors; vans.

Bolacha soda = bolacha sorda, apreciadíssima em Pernambuco

Bolo de goma = biscoito de polvilho

Cabidela = molho pardo

Cafofa de umbu = tubérculo de reserva alimentar da Spondias tuberosa

Carambola = Averrhoa carambola

Chocha bunda = feijão fradinho; Vigna unguiculada

Coco – Cocos nucifera

Cruviana = vento forte e úmido

Deforete = descanso do trabalho. Regionalismo em Alagoas e Pernambuco

Feijão branco/preto = variedades de Phaseolus vulgaris

Goiaba – Psidium guajava

Marchante = Negociante de carne bovina, açougueiro.

Marrã = termo popular no Nordeste Brasileiro para fêmea recém desmamada de porco ou ovelha.

Munguzá = Canjica no Sudeste do Brasil

Tanajura = fêmea da formiga saúva

Uvaia = Eugenia pyriformis

Zarolho = vesgo