A voluntária
Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 2 de julho de 2024
No final de 2019, eram publicadas em todos os jornais do planeta, as primeiras notícias sobre o aparecimento de uma nova cepa de coronavírus, nunca antes identificada em seres humanos. Em janeiro de 2020, o mundo era alertado sobre a sua identificação em humanos, disseminando-se como “pandemia”, denominada COVID-19. Em 3 de fevereiro de 2020, o Brasil declarou Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional, antes mesmo da confirmação do primeiro caso. A consolidação dos dados sobre casos e óbitos por COVID-19, coletados e disponibilizados pelas Secretarias Estaduais de Saúde, e realizada desde o início da pandemia pelo Ministério da Saúde brasileiro, permitiu o conhecimento da dinâmica da doença no país e, consequentemente, o estabelecimento de políticas para desacelerar o incremento no número de casos. Em janeiro de 2021, o Brasil vacinava a primeira pessoa contra a Covid-19.
Essa situação levou a uma das produtoras de vacina contra a covid-19 a encetar estudos sobre a eficácia e as consequências advindas de seu uso. Várias pessoas apareceram para servirem de voluntárias, uma delas foi Maria do Socorro, Socorrinho, como era conhecida em sua comunidade, situada no Rio de Janeiro. Apresentou-se pontualmente às 10 horas, no dia e local apontados. Depois de ouvir palestras sobre o programa, as pessoas participantes, entre elas, Socorrinho, ficaram sabendo dos procedimentos que seriam adotados e dos riscos que decorreriam da aplicação da vacina em teste. Foram assinados protocolos para a proteção dos voluntários e as responsabilidades cabíveis caso o teste saísse do controle. Ficaram sabendo, também, que o teste foi concebido para ser extremamente completo e orientado pela ciência. Assim, esperavam que a vacina em teste seria segura e eficaz e com o poder de trazer benefícios para a população brasileira.
Maria do Socorro foi uma das primeiras a serem vacinadas em sua comunidade. Ela fora convencida de que o seu ato, além de beneficiar a sociedade, traria vantagens para o voluntário: a satisfação pessoal de poder ajudar outras pessoas, ter sido solidária e ética, embora, essas palavras não lhes dissessem muita coisa, tal o seu estado de pouca instrução, semianalfabeta. Na comunidade sentia-se orgulhosa, e todos os meses dirigia-se ao local de controle, sendo-lhe coletado vários tubinhos de sangue, feito o teste Swab Nasal, para o acompanhamento da evolução ou não da Covid19. De três em três meses aplicavam um imenso questionário, sobre sua alimentação, seu estado de saúde, aspectos psicológicos etc.
As amostras eram enviadas para os Estados Unidos, para avaliação. Os resultados das análises eram sigilosos, deixando os voluntários indignados e apreensíveis, pois apesar de vacinados não sabiam em que estágio se encontravam, se infectados ou não. Aqueles que apresentavam sintomas durante a pesquisa, eram enviados para um hospital e seus nomes retirados do programa.
Na aplicação da segunda dose, Socorrinho estava presente. Relatou que havia surgido um pequeno calombo na sua coxa, que depois veio a saber tratar-se de um trombo, ou seja; segundo um enfermeiro, tratava-se de um coágulo sanguíneo, possivelmente formado a partir de uma pancada. Ela retrucou, dizendo não ter sofrido pancada nenhuma, que o calombo em questão surgira de uma hora para outra. Fazendo-se de surdo, o atendente afastou-se, indo ajudar a outros voluntários.
Depois de ter tomado a segunda dose, ela voltou para casa satisfeita por ter, novamente, cumprido com o seu dever de cidadã, de ter ajudado outras pessoas, ter sido solidária e ética. Ela não esquecera a frase aprendida durante a aplicação da primeira dose. Às amigas e amigos ela contou, vibrando, mais aquela façanha. Todos bateram palmas para ela e se afastaram. Ainda deu para ouvir alguns comentários maldosos – ela deve estar ganhando dinheiro com isso; - ela é doida; - ela não sabe de nada.
No outro dia os vizinhos estavam intrigados, Socorrinho era a primeira a se apresentar à rua, para limpar a sua calçada e apanhar o lixo acumulado entre o meio fio e o calçamento de pedras toscas. Embora amigas, ninguém tinha coragem de forçar a sua porta, mesmo frágil, para verificar a causa da ausência de Maria do Socorro. Um vizinho mais afoito resolveu empurrar a porta, verificando que ela ainda dormia. Outras pessoas entraram e se chegaram à sua cama, constatando sua morte. Levada ao Serviço de Verificação de Óbitos – SVO, foi atestado tratar-se de Covid, a causa da sua morte.