O Aposentado

Por mais de cinquenta anos, a vida dele foi marcada por uma rotina inalterada: acordava às seis da manhã e se dirigia ao trabalho. Sentado à beira da cama ele se encontrava em um dilema: "E agora, José? A jornada de trabalho chegou ao fim. Estou aposentado, livre da rotina diária de acordar ao primeiro sinal do amanhecer, tomar banho, fazer o café, vestir um terno, ajustar a gravata e enfrentar o trânsito frenético da cidade de São Paulo. Para amenizar o estresse do tráfego conduzia o meu carro gol branco ouvindo a minha seleção favorita de música clássica e jazz no Spotify conectado no rádio do carro. O que farei de agora em diante?”

Envolto em seu aconchegante pijama, ele ouvia sua música de jazz instrumental favorita criando um ambiente de puro relaxamento. Saboreando seu café, começou a enumerar as oportunidades que se apresentavam para se dedicar a atividades antes impossíveis devido à falta de tempo. Nos seus planos incluía-se a leitura de livros que aguardavam na sua escrivaninha para serem descobertos, assistir filmes inéditos e a revisitação de diversos clássicos do cinema de sua preferência. Agora, desprovido de compromissos laborais, ele tinha a liberdade de acordar a qualquer hora, seja às seis, oito

ou dez da manhã. Sua vida se transformaria em um domingo sem fim.

Havia um mês que ele estava reformado e sentia-se confortável. Ainda refletia sobre o trabalho e sua rotina diária, elementos que desvanecem com o tempo. Seus telefones, fixo e móvel, mantinham-se silenciosos. Para ele, isso era uma prova de que não era uma pessoa insubstituível - a empresa havia encontrado outro profissional e a vida continuava

como deveria. Alguns amigos que se aposentaram após deixar a empresa adoeceram ou caíram em depressão, não conseguiram aceitar essa transição. Mas um dia aceitariam a realidade porque a vida é um ciclo e chegou a hora de entregar o bastão.

José possuía diversas atividades de lazer, sendo a leitura a sua predileta. Não era apenas o ato de ler que lhe encantava, mas também o cuidado com sua biblioteca pessoal. Ele nutria um carinho especial pelos seus livros, pois cada exemplar reativava sua memória. Bastava um olhar para a obra em sua estante e as histórias ali contidas voltavam à sua mente, proporcionando-lhe imenso prazer.

A paixão de José pelos livros foi enraizada em suas constantes leituras. Quando questionado sobre sua paixão, ele explicava que o progresso da humanidade sempre foi fruto de pesquisas. Desde os tempos antigos até hoje, volumes de diferentes áreas como ciências humanas, exatas, biologia, saúde e sociais contribuíram para isso. Sem eles, ainda estaríamos presos à Era Paleolítica. Apesar de todas as ideologias e religiões terem queimado milhares de exemplares em praças públicas ao longo da história, os livros persistiram.

Ao organizar a seção de ficção científica, José pegou o exemplar "Fahrenheit 451", de autoria de Ray Bradbury. Esta obra distópica é vista por especialistas como uma das 100 leituras indispensáveis para se fazer ao longo da vida. Com a brochura em mãos, José refletiu sobre a trama. O título faz alusão à temperatura precisa para incinerar papel: 451 graus Fahrenheit (ou 233 graus Celsius). A narrativa segue a vida de Guy Montag, um bombeiro cuja principal tarefa é queimar livros. Em um universo onde os indivíduos estão fortemente conectados às telas e a literatura está à beira do desaparecimento, as obras

literárias são itens banidos e quem os detém é considerado um delinquente. Este livro nos convida a refletir sobre o individualismo, a violência e a alienação em sociedades autoritárias.

Sempre que perguntado por que não doava ou emprestava seus livros para outros desfrutarem, ele respondia que já havia feito doações. Mas ao constatar que suas valiosas obras estavam sendo desconsideradas ou tratadas como itens insignificantes, decidiu cessar essa prática. Observou que quando emprestava seus livros, as pessoas se apropriavam deles sem demonstrar o devido respeito e apreciação, o que o desmotivou a continuar com essa iniciativa.

José possuía uma coleção notável de DVDs de filmes. Ele percebeu que o filme Cinema Paradiso, que ganhou vários prêmios e o Oscar de Melhor Filme Internacional em 1990, não estava corretamente organizado na sua prateleira. Pegou o DVD, colocou-o no aparelho, ligou a TV e o som. Acomodado em sua poltrona, iniciou sua sessão de "Revendo os Clássicos".

O filme se desenrola no cenário pós-Segunda Guerra Mundial, numa pitoresca cidade siciliana na Itália. O jovem Toto, encantado pelo cinema local, estabelece uma conexão profunda com Alfredo, o projecionista. Essa amizade permite que Toto adquira um vasto conhecimento sobre a arte cinematográfica. Já adulto e cineasta de sucesso, Toto revisita as memórias de sua infância e, ao retornar à cidade, descobre o falecimento de seu velho amigo.

Depois de assistir ao filme "Cinema Paradiso", José foi inundado por memórias nostálgicas de sua infância. Ele recordou sua primeira experiência cinematográfica no Cinema Nossa Senhora Aparecida, com o filme "O Dólar Furado", numa tranquila tarde de domingo acompanhado por seus amigos da escola.

As poltronas, feitas de madeira, eram simples, mas confortáveis. Antes do filme começar, eles costumavam se divertir procurando palavras nos anúncios classificados das empresas locais que cobriam a tela de projeção, uma cortina recheada de publicidade, com mais propagandas do que em um macacão de piloto de Fórmula 1.

O filme "O Dólar Furado" conta a história de Giuliano Gemma, um soldado que retorna da guerra apenas para se encontrar em outra batalha em casa. Desconhecido por ele, seu irmão havia se transformado em um notório pistoleiro conhecido como Black Jack, que enfrentava os criminosos locais.

Assim como no filme "Cinema Paradiso", onde o personagem Toto quando adulto retorna à sua cidade natal, José também faz uma jornada de volta, desta vez para o Cinema Nossa Senhora Aparecida, no bairro do Jaçanã. Contudo, ao chegar, ele se depara com uma surpresa. O cinema, outrora batizado em homenagem a uma santa padroeira, havia se transformado em uma igreja de verdade. A confeitaria Sintra, situada ao lado do cinema - local onde José e seus amigos da escola costumavam saborear uma bengala de pão com manteiga, cortada em pedaços proporcionais ao número de crianças presentes e degustar a bebida Tubaína, preparada pelo português da padaria após assistirem a um filme - não existe mais. Agora é uma loja

chinesa.

Na encantadora Avenida Jaçanã, decorada com um mosaico de paralelepípedos e local do antigo cinema Nossa Senhora Aparecida, o prefeito mandou arrancar o pavimento. Vieram os homens com suas ferramentas, retiraram as pedras e pintaram todo o caminho de cinza. Que tristeza José sentia!