O sacrifício de Açucena

Açucena estava pronta para começar a fazer seus trabalhos do curso de Serviço Social quando ouviu passos. Olhou na direção da porta e viu sua mãe, que vinha com ar suplicante. Esperando que a mãe viesse falar rápido, pois tinha muita coisa para estudar, perguntou:

-Quer falar alguma coisa, mãe? Precisa de algo?

A mulher limpou um pouco a garganta antes de dizer:

-Açucena, minha filha, seu irmão está indo muito mal na escola, correndo perigo de ser reprovado.

Sentindo raiva, Açucena pensou que era sempre a mesma coisa. Toda vez que seu irmão Roberto, que era dez anos mais novo, não sabia fazer a lição, ela tinha que ajudá-lo. Antes, ela o ajudava sem reclamar, porém nos últimos tempos aquilo estava ficando chato. Ele não pegava em um livro nem mesmo abria os cadernos para fazer as lições se a mãe não mandasse. Em casa, só sabia jogar videogame ou ficar pendurado no celular. E a mãe sempre recorria a ela, dizendo:

-Açucena, vá ajudar seu irmão com a tarefa.

Ela tinha que ajudá-lo principalmente quando Roberto (quase sempre) não estava sabendo fazer as tarefas de Português e Inglês, matérias em que ela sempre fora muito boa. Mas ajudar Roberto havia se tornado uma pura perda de tempo. Ele não prestava atenção e fazia pouco da cara dela, que queria lavar as mãos em relação ao irmão.

Açucena disse à mãe:

-Eu sei que Roberto está indo mal na escola, mãe. Várias vezes, ouvi você comentando isso com pai.

-Então, minha filha, já que você sabe disso, você pode ensinar o seu irmão para ele não ser reprovado.

A moça ficou pasma no entanto falou com toda a calma possível:

-Mãe, eu estou fazendo faculdade de Serviço Social. O curso é puxado, eu tenho que estudar muito. Não estou estudando apenas para tirar boas notas, mas para um dia exercer uma profissão. Então, entenda que não posso ajudar.

Fazendo cara de choro, a mãe pediu:

-Por favor, Açucena, vá ajudar o seu irmão! Ele não sabe nenhuma matéria! Ele vai ser reprovado!

-Ele vai ser reprovado porque não estuda. Eu mesma ouvi você dizendo que os professores andaram reclamando que ele não presta atenção às aulas e fica o tempo todo no celular olhando Tiktok ou whatsapp. E aqui em casa eu não o vejo abrir um livro para estudar, mãe. Agora, com licença que eu tenho que estudar.

Ainda com voz chorosa, a mãe continuou:

-Açucena, seu irmão vai ser reprovado! Vá e ensine as matérias da escola a ele!

Tentando não perder a paciência, Açucena explicou à mãe:

-Eu não posso passar a minha vida à disposição dos outros, sempre me sacrificando, mãe. Tenho que cuidar de mim e pensar no meu futuro. Roberto tem dez anos, já tem idade de aprender a se virar! Ele tem que ter vergonha na cara, prestar atenção às aulas, parar de ficar direto no celular e pegar nos livros! Se ele não estuda, fique em cima dele, tome o celular e o obrigue a estudar! E pai não é professor universitário ? Pai não pode ajudá-lo? Não me obrigue a prejudicar os meus estudos! Isso não é justo!

Então a mãe começou a chorar e se lamentar:

-Minha filha, você sabe que eu não tenho muito estudo! Não posso ajudar seu irmão! Açucena, você sempre gostou de estudar e foi boa aluna e sabe as matérias! Ajude seu irmão para ele não ser reprovado!

As duas então ouviram a porta da frente se abrindo e adivinharam que era o pai de Açucena, que estava voltando para casa. Ele se aproximou e quis saber o que era. A mãe contou tudo e o pai bradou:

-Você é a mais velha, tem a obrigação de ajudar seu irmão! Aliás, era para estar ajudando direto desde o início! O problema é que você tem o caráter muito ruim e prefere vendar a alma ao diabo a ajudar o irmão! Sabe quanto eu ralo dando aula na universidade para pagar a mensalidade da escola dele? Pois vá ajudar seu irmão!

Açucena respirou fundo e se defendeu:

-Por que você não diz a ele o quanto você se mata de trabalhar para ele estudar em uma escola particular? Pai, eu estou fazendo Serviço Social, o curso é puxado! Não posso ficar sem estudar para ajudar Roberto!

O pai esbravejou:

-Você era para estar fazendo Letras! Devia estar estudando para ser uma professora como sua avó! Bem, ainda dá tempo. Você pode trancar Serviço Social e ir fazer Letras, mas agora vá ajudar seu irmão!

De tanto a mãe chorar e o pai reclamar, Açucena teve que ir ajudar Roberto. E o calvário começou. Ela chegava a passar cinco horas direto explicando uma regra gramatical ou como fazer um cálculo no entanto Roberto não prestava atenção e fazia cara de deboche. Açucena berrava:

-Roberto, presta atenção e desliga esse celular! Não é hora de ver tiktok! Não me faça perder tempo para nada!

O menino ainda a provocava:

-Açucena merda, Açucena bosta, faz papel de idiota...

Ela tinha que se controlar para não virar a mão na cara de Roberto e chegou a dizer aos pais:

-Ele não presta atenção, eu só perco tempo. Estou sem estudar para ajudá-lo e ele me chama de Açucena merda e Açucena bosta!

-Minha filha, não deixe de ajudar seu irmão! choramingava a mãe.

As palavras do pai feriram Açucena:

-Ele diz isso porque qualquer um nota que você não bate bem da bola! O problema é que você não sabe se aproximar das pessoas, por isso ninguém respeita você nem quer ser seu amigo! Mexiam com você na escola porque notavam de longe que você é uma abobalhada!

Lembrando do bullying que tinha sofrido quando criança, Açucena sentiu as raízes da ira crescendo no seu coração, entretanto cedeu às lágrimas da mãe e voltou a tentar ensinar o irmão, sem sucesso. Ele não prestava atenção e ela só perdia tempo. No final, Roberto acabou sendo reprovado. O pai culpou Açucena, dizendo que tinha sido por causa da má vontade dela e a mãe chorou muito. Decidiram que, no próximo ano, ele iria para uma escola mais barata. Roberto continuou indiferente e fez piadas cínicas em cima da reprovação.

Uma tarde de sábado, a mãe passava a roupa e o pai assistia à televisão quando Açucena se aproximou, um olhar carregado de raiva. A raiva era tão transparente que a mãe chegou a ter medo da filha e o pai ficou sem jeito.

-Que foi, minha filha? a mãe estava embaraçada.

-Por que está com essa cara de que quer engolir a gente, Açucena? indagou o pai.

Com ar acusador, Açucena revelou:

-Tirei um monte de notas baixas, os professores disseram que a qualidade dos meus trabalho caiu muito e acabei sendo reprovada numa matéria importante! Sabem o que é isso? Sabem? Por que acham que isso aconteceu?

O pai falou com autoridade:

-Isso aconteceu porque você não foi fazer Letras como eu disse. Tranque o curso para ir estudar Letras e ser uma professora de Português como sua avó foi.

As palavras saíram ferinas dos lábios de Açucena:

-Não, isso aconteceu porque vocês me forçaram a me sacrificar para ensinar aquele bostinha inútil! E de que adiantou? Ele acabou sendo reprovado! E nem pensem em continuar me culpando! Eu passava tardes inteiras ensinando enquanto ele ficava fazendo pouco da minha cara! Ah, pai, escute uma coisa: Deus me livre ser professora! Se ensinar o bostinha do Roberto já foi estresse suficiente, imagina ensinar uma turma inteira de bostinhas que não querem saber de estudar! E você sabe que isso é o que acontece com todo professor hoje em dia! A verdade é que vocês nem ligam para mim! Só se importam com seu querido caçulinha, que fez o dinheiro da mensalidade ser jogado no lixo! Tudo bem eu me lascar para ele não ser reprovado, não é? Pois então, a partir da agora, não contem mais comigo! Aquele vagabundo inútil que se vire!

Pisando forte, Açucena se afastou dos pais e saiu para ir passear na praça, esbravejando:

-Acabei fazendo um sacrifício inútil! Perdi meu tempo para nada! Só fiz me ferrar!

Em casa, a mãe chorava e o pai não sabia o que falar.