DOIS VULTOS NA PAISAGEM

A paisagem desfilava vertiginosa perante a janela de Rodrigo, o queixo apoiado na mão, reflexivo, o pensamento vogando bem longe dali. Encontrava-se na carruagem – restaurante, de pé junto à janela, bebendo um gin tónico, seu vício de sempre.

A viagem no comboio Alfa iniciara-se meia-hora atrás e rapidamente fizera jus ao seu nome, o rápido Lisboa – Porto. Em cerca de duas horas e meia faria trezentos quilómetros, aproximando assim essas duas cidades.

Ao fim de alguns minutos, olhou lentamente à volta até que seus olhos estacaram nela. De pequena estatura, rosto oval, cabelo escuro cortado à pajem, a sua beleza cativara-lhe a atenção.

Ela também olhou rapidamente para ele, depois fixou-se no copo de sumo de laranja, que sorvia lentamente. Rodrigo desviou de novo o olhar, focando a paisagem em movimento rápido.

Alguns minutos depois, a mulher passou por ele e nisto sofreu um ligeiro empurrão por parte de um passageiro distraído, fazendo-a chocar com Rodrigo e esfrangalhar o copo em cacos no chão. Atrapalhada com a situação, pediu-lhe desculpa pois entornara a bebida sobre as calças dele, numa situação deveras comprometedora.

- Desculpe, não tive culpa.

- Não tem importância – respondeu-lhe ele. Entretanto apresentou-se : - Rodrigo Calisto, representante da Baiersdorf em Lisboa.

Ela apertou a mão que ele lhe estendeu. – Chamo-me Iolanda Colaço e sou advogada num escritório no Porto.

- Muito prazer. De viagem?

- Sim, parece-lhe óbvio, não? – Ele coçou a cabeça, atrapalhado, fazendo-a rir.

- Não esteja nervoso, a culpa foi minha. - disse ela, referindo-se às suas calças, bastante molhadas à conta do suco de laranja entornado.

Rodrigo riu para disfarçar. Olhou-a melhor. Apesar de gordinha, uns bons quilos acima do peso ideal, era de facto bem bonita, dos rostos mais bonitos que encontrara na sua vida.

Isso fez-lhe lembrar o problema que tinha entre mãos: enrolara-se com uma colega da empresa, era separada e tinha um filho, coisa que ela tinha ocultado até há pouco, durante os cerca de três meses de relacionamento. Depois descobriu e reagiu mal, afastou-se abruptamente dela, deixaram de se encontrar.

Agora sentia um certo desconforto, pois os remorsos não o deixavam dormir. Ela, muito chorosa, exacerbara a situação e contara tudo às colegas mais íntimas, sendo agora apontado a dedo. Ele nem sequer sabia se ela tinha contado tudo direito ou enviesara a verdade.

Permaneceram em silêncio durante algum tempo. Estavam ambos de pé, o que se estava a tornar algo desconfortável. Iolanda então convidou-o a sentar-se numa mesa próxima, vazia.

Rodrigo continuava de semblante carregado, o que despertou a curiosidade dela.

-Preocupado, hem?

Ele hesitou em responder, depois acabou por se confessar, contando, com algum detalhe, o que o andava a preocupar. Depois, teve consciência da situação. Estava perplexo com o que agora acontecera. Sem a conhecer de lado algum, Rodrigo contara-lhe detalhes da sua vida particular. Porquê?

Iolanda olhava-o, tentando compreender a situação.

- Porque fugiu dela? Afinal gostava ou não dela?

Rodrigo não respondeu e o silêncio disse tudo. Ela olhou-o, percebendo a incongruência dele. Afinal, queria aventuras mas não responsabilidades. Após uma pausa, Iolanda acabou por falar:

- Sabe, Rodrigo? Já percebi tudo. O mundo está cheio de irresponsáveis, homens que usam e deitam fora, também já passei por isso e fiquei vacinada. O meu ex. fez-me a vida negra, ciúmes e sevícias, não tinha qualquer respeito por mim, usava-me como se fosse uma prostituta, um mero recipiente de despejo, depois fartou-se, acabou por me largar e ao filho ainda pequeno. Estamos separados há uns anos e não quero nada dele. O meu filho é a minha vida, nada mais me interessa. Acrescento que embora não fosse a minha intenção inicial, vou dar-lhe um conselho: se de facto gosta mesmo dela, procure-a e diga-lhe aquilo que o coração dita. Caso contrário, viverá sempre com essa pedra no sapato.

Dito isto, olhou-o demoradamente e de seguida levantou-se, virando-lhe as costas, e dirigindo-se para o seu lugar de origem, na outra carruagem.

Rodrigo ficou algo surpreendido com a assertividade dela, mas percebeu que sendo mulher, se tinha colocado na pele da outra.

Chegados ao destino, à estação de Campanhã, ele perdeu-a de vista. Procurou na gare mas não mais a viu.

Entretanto começara a chover.

Enquanto espreitava para a rua à procura de um transporte, continuou a pensar nela, intrigado por ter contado aspetos da sua vida mais íntima a uma desconhecida. Porquê?

Resignado, apanhou um táxi para o hotel, com a imagem de Iolanda no pensamento.

Ouvindo "LE PREMIER BONHEUR DO JOUR " de FRANCOISE HARDY (17-01-1944 /11-06-2024)

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 25/06/2024
Reeditado em 12/07/2024
Código do texto: T8093121
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