A desconhecida.
Na história da minha vida não vai existir forte, não vai existir certo nem errado. De certo isso é bem pragmático, até porque se em sociedade existo, eu existo cercado de maldade, ou até mesmo de bondade nunca se sabe. Humanos são seres variáveis e muito mutaveis, nesse mundo maluco contos são meu atual refúgio. E por isso voltei nesse lugar maldito para inserir conhecimento em meus titulos.
Diante de uma biblioteca de livros inacabados, penso qual história contemplará minha nova temporada. Nada de realmente muito interessante vem acontecendo e perdi muitos de meus personagens constantes. Um pouco preocupante. Uma história sem desenvolvimento não é nem um pouco interessante. Com um segundo olhar para a direita vejo mais uma vez aquele mesmo personagem de passagem. É uma desconhecida, de fato. Empoleirada na escada, translucida como um fantasma.
É engraçado, porque conheço todos seus gostos, sei sua idade, a data de seu aniversário, sei sua cor e bandas favoritas, sei seu nome completo, e sei também seu sonho de carreira; creio que sei mais sobre esse personagem do que sobre mim mesma. O que é péssimo, por que eu deveria ser a protagonista dessa história, que hipoteticamente é a história da minha vida, e também porque, opa! Ela não passa de uma desconhecida.
Volto-me para a esquerda, tentado ignorar aquela que vi. O mundo está em constante correria, e estou aqui para uma pesquisa! Procuro entre muitos títulos, e acabo novamente me distraindo, olhando para aquele livro em especifico. E ah, havia me esquecido como ele era lindo, sua capa manchada com 24 tons de aquarela, risadas escapando de suas páginas uma linda história sendo contada. O puxo da estante com um solavanco. Olho novamente para a escada, a desconhecida permanece parada, me olhando com interessse velado, e seus olhos afiados como os de uma águia me observavam espantada.
Quando foleio as páginas, as risadas saltam duas crianças correm soltas, a aquarela toma conta da biblioteca. Conversas e mais conversa, essas crianças são duas tagarelas! A desconhecida sorri de forma terna parecendo encantada, a vejo se ajustar para observar melhor da escada. Ouço o som de uma bola, mais corridas animadas, tons vibrantes de amarelo tomam conta do quarto, giz de cera no chão, bonecas no carpete, discussões acirradas para decidir quem seria a sereia mais irada. Dai elas voltam a correr, com os braços abertos, fingindo ser aviões! Solto uma gargalhada. A de cabelos encaracolados me olha parando de correr, confusa, parece estar tentando me entender, tentando me reconhecer então ela sorri, um sorriso tão terno, um sorriso tão feliz, e então uma lágrima solitária. Fecho o livro em um baque sem nem querer ver a mancha que deixei no papel, aquela linda tela de felicidade que foi pintada na biblioteca se vai, junto das crianças que são puxadas devolta para as páginas. A desconhecida está espantada, mas não me importo, não a conheço, porque deveria me importar? Limpo o rosto, e ponho o livro na estante.
Olho para o relógio acima da porta, é hora de ir embora. Percebo que estou atrasada, atraso é algo constante, atrasada para a escola, atrasada na escola, atrasada na vida. Em geral isso se tornou um costume, e não é realmente mais tão preocupante. Finalmente saio da biblioteca, atravessando aquela porta com sino barulhento, vejo tudo se esvair em areia branca, sobrando apenas uma placa de sinalização, "memórias" é um bom nome. No fim não consegui acrescentar nada ao meu poema, fiquei distraída com a desconhecida.