NADA POR NADA

NADA POR NADA

Élina está em frente ao espelho do banheiro pensando no seu retrospecto de vida:

- O que eu fiz durante este tempo todo de existência – Passava as mãos pelos longos cabelos que um dia foram castanhos claros, quase loiros e agora eram de um tom sem definição devido a tantas tinturas que passava sobre eles. Seus dedos metiam-se sobre os chumaços de cabelos e os estendia para ver o ressecamento que começa a tomar conta de cabelos que outrora foram sedosos e viçosos.

- Não fiz nada, não ajudei ninguém a se salvar de nada, não fiz nada por ninguém, nem pra mim mesma! Seus olhos fixavam em seu olhar e perdiam-se na imensidão do vazio que pairava sobre sua vida.

Continuava a passar suas mãos nos cabelos:

- E estes cabelos mal cuidados – jogava-os ao ar para sentir sua leveza que não mais tinham. – Não por falta de tempo, pois não faço nada, tenho uma vida inútil, fico em casa o dia todo lendo revistas. Se pelo menos lesse algo que me trouxesse prosperidade, conhecimentos, não, leio somente revistas em quadrinhos, como se ainda fosse criança, fotonovelas como uma adolescente sonhadora. Tento mas não consigo ler livros, não tenho o raciocínio desenvolvido para entender aquelas palavras difíceis que os escritores escrevem. São palavras de outro mundo, são de outra realidade, não a minha.

Seus olhos começam a mergulhar em lágrimas:

- Queria poder cooperar com alguém a construir algo, mostrar aos outros a minha capacidade. Mas qual capacidade, se não tenho nenhuma? Onde está? Sempre ouvi dizer que todos são capazes. Eu sou capaz de que? Estou perdida. – De seus olhos borbulhavam uma imensidão de lágrimas fazendo com que seus olhos começassem a incharem.

Seus lábios tremem de desespero impedindo que sua voz saia normal, emitindo apenas sons guturais. Sons ininteligíveis, sons os quais nem ela mesma entende. Passa o dedo sobre seus lábios ressecados e murchos:

-De que adianta ficar desesperada! Não adiantará de nada. Somente com o suicídio encontrarei a paz. Não, nem com a morte, isso é uma fuga e eu não quero fugir da realidade, não quero fugir de mim mesma. Quero me enfrentar, enfrentar a todos, enfrentar o mundo, mas eu não consigo nem saber quem eu sou! Como conseguirei?

Sua testa, ainda jovem, mas já mostrando sinais de envelhecimento, com profundas rugas:

- Sou jovem, mas sinto-me uma velha, imprestável, que não sabe nem consegue fazer nada, que ninguém dá importância. Lógico que não, quem se importaria comigo se nem eu mesma me valorizo, se nem eu me importo comigo mesma?

Suas mãos, que deveriam estar limpas, sedosas, mostram sujeiras impregnadas e a aspereza de uma vida sem significado:

- Estas mãos – disse olhando para suas mãos carquilhadas, rotas, esfregando-as levantando à frente de seus olhos para vè-las com mais detalhes, sentindo-se ainda mais derrotada – que não fazem nada, apenas pegam aquelas revistas imundas e as folheiam, que não é capaz de segurar uma criança sequer para cuidar, para dar carinho, de fazer carinho no namorado, pois não o tenho. São mãos sujas, completamente sujas de mofo do parasitismo em que eu as faço viverem.

Seu rosto exala uma expressão de ódio, mas um ódio inexpressivo, pois nem isso conseguia sentir tamanha a incapacidade de ter sentimentos:

- Tenho ódio de ter nascido, ódio de existir, ódio de não ser útil, ódio de quem é útil para alguém. Não deveria sentir, mas sinto, somente ódio em minhas entranhas.

Afasta-se do espelho para olhar-se totalmente naquele espelho que está lhe mostrando quem ela é, em quem ela se transformou:

- Um trapo, não se vê nada de interessante, somente um objeto, sem valor, insignificante, roto. Ninguém olha, ninguém deseja. Parece estar escrito em mim que sou imprestável – faz o gesto como se estivesse colocando uma placa sobre seu pescoço alcançando seu tronco desnudo, magro, seios caídos, murchos, sem viço algum.

Longo tempo de meditação e contemplação no espelho, se analisando e vendo o que restou dela, o que sobrou daquela menina, daquela mulher linda, atraente, cheia de vida e esperança.

Abre uma gaveta do armário. Revira para encontrar naquela bagunça geral de diversos tipos de maquiagens que usou um dia. Encontrou um batom vermelho, e lambuza seus lábios, esfregando-o bruscamente, pensando:

-Estes lábios que ninguém quer beijar, murchos, frios, gélidos, sem calor humano, sem nada para oferecer. – E continuava a esfregar o batom até ficar com a boca e bochechas impregnadas pelo vermelhidão do batom que se quebrara tamanha força da raiva que estava sentindo.

Olha para a gaveta, pega o pó, e começa a passar sobre sua pele. Rasga um pedaço de papel para limpar as bochechas vermelhas do batom, e assim, passa o pó, agora, lentamente, pensando:

- Minha pele está tomada pelas rugas, parece um mondongo, pareço um velha. Mas eu posso escondê-las. Eu sei como. – E assim, continuou a passar cuidadosamente o pó sobre sua pele de seu rosto.

Busca na gaveta a sombra, encontrou a azul brilhante, neon, mas ao lado tem uma verde:

- Será que fica melhor azul, ou verde, ou será rosa? – Vasculhou na bagunça para encontrar a rosa e encontrou. Colocou as três lado a lado. – Qualquer uma vai ser igual a qualquer outra, Nem sei mais como se aplica, não lembro de como fazia quando era vaidosa. - Faz um arco-íris com as sombras. Olha-se no espelho e acha-se linda. Batom, agora somente sobre a boca, o pó disfarçando as rugas e a sombra nas pálpebras realçavam seus olhos azuis esverdeados, ora verdes azulados, herança dos pais.

Olha-se no espelho e busca no armário uma roupa para cobrir o corpo nu. Escolhe uma blusa com mangas curtas para disfarçar a magreza. Uma calça que lhe caía bem, embora estivesse meio larga, devido ao emagrecimento, mas ainda vestia-lhe bem. Pega uma sandália e a coloca. Sua respiração já é diferente.

Élina sai de frente do espelho e vai em direção à janela, abre-a, pois estava fechada há muito tempo:

- Vejo o sol bem amarelo, incandescente; vejo as ruas movimentadas, carros e mais carros, pessoas caminhando outras correndo, todas inúteis, que não tem nada para fazer mas estão passeando para verem gente, outras indo a seus trabalhos idiotas, sem vontade alguma. Prefiro ficar em casa do que fazer o que não gosto. Mas, oque eu gosto? Nada de nada. Essas pessoas pelo menos estão tentando libertar-se da inutilidade da solidão fazendo algo, caminhando à toa, indo a lugar algum, mas estão ali, fugindo de si mesmas, mas vão em frente. Querem ver gente, conversar, viver. E eu, nada.

Assim fica olhando por alguns minutos, nem percebe que o tempo passa.

Olha para uma pessoa, não faz questão de identificar se é homem ou mulher, é simplesmente uma pessoa:

- Lá está ela, uma pessoa parada – faz gestos com os braços apontando em direção àquela pessoa encostada no prédio em frente, como se estivesse mostrando para alguém, mas era para ela mesma – sem fazer nada, ao meu ver, bem despreocupada, deixando o tempo passar, olhando e observando todo aquele povo correndo para não chegarem atrasados nos seus trabalhos.

- Quero trabalhar, mas quem vai me dar emprego? Por isso cai nesse marasmo, nessa desgraça. As oportunidade não apareciam, ou eu não sabia aproveitá-las.

Sai da janela e vai em direção à porta, abre-a e vai, pelo imenso corredor, em direção à sala. Quando chega na sala um espelho imenso de cristal a faz deparar-se consigo mesma, mostrando-lhe o quão bela ela era, quanto bela ela ainda é.

- Quem sou eu? Essa sou? Nem parece aquela Élina de momentos atrás.

Busca outro espelho e vê a mesma pessoa do espelho anterior.

- Meus olhos modificaram-se com as sombras; meus cabelos voltaram a serem bonitos com uma simples escovada; minha pele não parece mais cansada, coberta pelo pó; meus lábios parecem palpitantes e novamente chamativos. Estou viva.

Animou-se novamente. Dançava e cantarolava qualquer coisa, sempre a olhar-se no espelho. Era outra pessoa. Do nada saiu aquela urucubaca de cima dela e passou a sentir a beleza de viver.

- Descerei e tentarei ajudar aos outros. Conversarei com quem estiver sozinho. Preencherei o vazio de quem está como eu estava há pouco e ao olhar para as pessoas na rua me fizeram ver o que meus olhos não me permitiam porque minha cabeça, meus pensamentos estavam tomados pelo desespero, pela desgraça, pelo espirito do mal, mas agora vejo que a gente tem que construir nosso próprio alicerce, se quisermos viver tranquilamente. Tentarei e conseguirei ser feliz novamente.

Saiu. Chegando na rua, as pessoas passando atribuladas, rapidamente, debatendo-se umas nas outras. O calor terrível fazia com que seus semblantes fossem sisudos, desesperadores, mas seguiam em frente. O suor tomando conta e marcando seus corpos através das roupas que não resistiam ao calor intenso. Sente-se fazer parte da vida, sente-se como eles todos. Dá risadas e sai correndo. Para. Corre, levanta os braços e percebe que está participando da vida novamente. Se dá conta que todos também devem estar deprimidos, com algo não legal dentro de seus pensamentos mas seguem em frente. As pessoas vão passando, debatendo-se, desviando-se para não se baterem. Vida que segue, atabalhoada, mas segue.

Élina sente sua maquiagem se derretendo, mas não se importa, isso é apenas um detalhe, por dentro não mais se derrete. Passa a mão sobre seu rosto e não sente o sulco das rugas, mas uma pele rejuvenescida, sem marcas da tristeza. O sentimento de alívio, de felicidade invade seu corpo, sua alma, seu espírito e assim começa a viver uma nova vida em si mesma.

Élina é apenas uma personagem que criei para mostras às pessoas como podem ficar quem não tem forças para continuar a viver.

Não é assim que te sentes? Já sentiu isso alguma vez? Não é esta a verdade da nossa vida? Ponha a mão lá no fundo do seu EU e retire de lá a verdade, que ninguém quer admitir mas é a realidade, ou foi um dia.

Mesmo estando junto de pessoas, estamos sozinhos, se assim nos permitirmos ficar. Não espere que alguém te dê a mão, não espere por ajuda. O esforço deve partir de dentro de ti para conseguires sair de qualquer enrascada, de qualquer sentimento ruim que possa estar pairando em tua mente.

Assim é a nossa vida, a vida de quem Deus fez à sua imagem e semelhança mas que nem todos o seguem, por isso tem essas nuances, esses momentos de plena tristeza e depressão, mas também o extremo da felicidade.

Élina agora é uma mulher feliz e assim sua vida vai se transformar e voltar a ser o que ela merece ser.

(texto escrito em 07/10/1977 com algumas modificações em 21/06/2024, 47 anos depois de ter sido escrito, mas parece que foi ontem que o escrevi)