VIDAS CRUZADAS

Essa história se passa no iniciozinho dos anos 70, Carlos na efervescência hormonal dos seus 16 anos conhece a tia do amigo Lúcio, durante o primeiro jogo da copa do mundo de futebol.

Com o Brasil jogando o fino da bola, a cada vitória, já se combinava novo encontro para a próxima partida. Naquela época, TV em cores ainda era tratada como um bem de consumo restrito, e na casa de Lúcio, o aparelho era daqueles cheio de requintes para a época.

Com a empolgação crescendo com o escrete canarinho, todos passaram a trazer algum salgadinho e cerveja gelada, vale aqui lembrar, que naquele momento o mercado cervejeiro vivia acirrada disputa entre a carioca Brahma e a Antártica paulista, ainda bem que se jogava a copa no nosso inverno, quando o consumo despencava, ficando tranquilo encontrar a loura.

Para os esquecidos de plantão, nos meses de verão com a expansão do consumo, e uma produção que ainda exigia muito tempo de maturação, o desabastecimento do precioso líquido fazia parte dos problemas associados à estação.

Tia Elga como todos se referiam a ela, era uma advogada bem sucedida, ainda morava na mansão dos pais de Lúcio, mas procurava nova morada, no ainda não badalado bairro do Leblon.

Carlos, momentaneamente só estudando para o vestibular e se ofereceu para ajudá-la nas visitas agendadas com corretores. É aquela coisa, duas cabeças em caráter normal, pensam melhor do que uma, e isso poderia ajudar, tanto nos pontos positivos, como nos negativos associados a cada imóvel visitado.

Depois de muito perambular pelas ruas do bairro, enfim surgiu um apartamento de fundos, no térreo de um prédio de apenas seis imóveis. O único senão, ficava por conta de ausência de vaga, mas isso foi logo minimizado pelo zelador do prédio, que se prontificou a encontrar uma nas proximidades.

Assim, Helga em duas semanas, já dispunha de endereço novo, o que gerou uma comemoração especial, interessante que de adolescentes na festa, apenas seu sobrinho e Carlos.

Como se bebia Uísque e fumava naquele tempo. Em pouco tempo, uma nuvem de fumaça se formou acima da cabeça das pessoas, deixando o ar que se respirava impregnado de tabaco.

Em visitas ao seu apartamento ela foi me relatando à via crucis que se abateu sobre sua vida nos últimos anos antes de morar com sua irmã no Jardim Botânico.

Primeiro um casamento dividido com outra família, explico melhor, quando se casou com Rogério, ele avisara a sua outra família, que iria fazer uma especialização em Dallas, Texas, na América do Norte.

A primeira família já se habituara com pausas na relação, além do que, a vida de ginecologista/obstetra carrega suas especificidades: que profissional recebe com toda tranquilidade a ligação de uma mulher de madrugada e só retorna à casa no fim da tarde, e isso se não tiver um plantão anteriormente agendado.

E assim conseguiu viver praticamente um ano, dando conta de duas famílias simultaneamente.

Como dizem os mais velhos, “mentira tem pernas curtas”, e foi através da consulta de uma amiga de Helga, em início de gravidez, que acabou descobrindo o outro lado da moeda. Ao apertar a tecla viva voz do telefone, a secretária perguntou se podia passar a ligação de sua esposa e ele permitiu.

Não era Helga do outro lado da linha, e sim uma tal de Viviam, que fula da vida, queria saber quando chegaria a casa, pois ainda faltavam ser resolvidas algumas questões, antes da viagem da nova lua de mel.

Carmem engoliu em seco o diálogo, mas ao sair do consultório, rumou direto para a casa de Helga, agora já no sexto mês de gravidez. Ela nem se fez de rogada, pegou duas malas e enfiou tudo do marido e rumou para o consultório. Rogério saíra, há pouco, insistiu com a secretária, e ela acabou passando o outro endereço do patrão.

Helga nem estava a fim de montar um barraco, quando a doméstica abriu o portão da casa, ela a cumprimentou e falou que as malas pertenciam ao Dr. Rogério e partiu.

Quando ele tentou se explicar ao telefone, desligou a ligação, e foram muitas as tentativas, claro, em vão.

Procurou outro ginecologista e teve Albertinho de forma independente. Mais tarde, precisou montar um esquema para conciliar seu trabalho com a atenção ao filhote, que com apenas três meses já permanecia numa creche, pertinho de sua morada, em tempo integral.

Encontrou no grupo de mães da mesma creche uma espécie de rede de apoio informal, faziam muitas atividades juntas, mas quando alguma delas precisava dar uma fugidinha, encontrava apoio irrestrito.

Morar no térreo tem suas vantagens, mas também se fica sujeito a receber visitas inesperadas. Apesar das grades inibirem o acesso ao interior pelas janelas, do lado de fora com uma arma é possível conseguir em dupla invadir o imóvel. Por sorte, um vizinho desconfiou da movimentação na lateral do prédio e chamou a polícia, felizmente o evento rumou para um final feliz.

A solução encontrada por Helga para minimizar o problema foi espelhar todas as janelas com um filtro especial. Também comprou revolver calibre 33, para qualquer eventualidade, agora podia ver tudo lá fora, e a recíproca não era verdadeira.

A cidade naquele momento passava por uma onda de meningite, e foi aí que novo drama se abateu sobre Helga. A coisa foi muito rápida. E em dois dias Albertinho veio a óbito.

No dia seguinte ao enterro, sem avisar, Rogério resolveu fazer uma visita surpresa a Helga, ainda possuía a chave do apartamento, e nem se deu ao trabalho de tocar a campainha, ela estava deitada na poltrona da sala, ainda sob efeito de calmantes.

A arma ficava guardada num compartimento lateral da poltrona, com muita calma pegou e destravou o equipamento, quando a porta foi escancarada ela disparou até se esgotarem todos os projéteis.

Rogério veio a óbito ali, na hora.

Mesmo abalada, ligou para a polícia, e pediu urgência.

A delegacia do Leblon ficava a menos de cinco minutos.

Alcides José de Carvalho Carneiro
Enviado por Alcides José de Carvalho Carneiro em 20/06/2024
Código do texto: T8089772
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.