A vingança

Gilberto Carvalho Pereira - Fortaleza, CE, 18 de junho de 2024

Aquela noite parecia normal, era domingo, algumas pessoas passeavam na praça da pequena cidade. Os homens em pé sobre o meio fio da calçada, as moças a voltearem à praça, mostrando-se para futuros pretendentes. Era o passeio conhecido no local como “quem me quer”. Estávamos na década de 1960, os dias ainda corriam lentos, pouca novidade naquela plaga, a expansão da monocultura do cacau trazia esperança, mas só beneficiava os mais ricos, os cultivadores dessa planta – Theobroma cacao – que produz o cacau, matéria-prima do chocolate, conhecido como “manjar dos deuses”. Concentrador de renda, o “fruto ouro” exportava toda a sua riqueza para outros países, trazendo divisas para o Brasil. Porém, os avanços tecnológicos que aconteciam lá fora, demoravam a chegar à região, retardando seu progresso.

Voltando ao ambiente da pracinha da prefeitura, como era conhecido o logradouro onde o footing realizava-se sem falta, aos domingos, às 22 horas, impreterivelmente, começava a debandada das moçoilas. Era a hora de voltar para casa, ordem expressa dos chefes de família. Já os rapazolas começavam a se dispersar, a partir das 23h30. Em poucos minutos, a praça ficava completamente solitária. A fixação desses dois horários, segundo os frequentadores da pracinha, tinha como motivo, não sei se verdadeiro, o aparecimento de um homem completamente nu, que assustava as moças, tidas como pudicas, recatadas. Para os homens, era a hora do despertar do leão, que os colocava para correr.

Naquela noite, como iniciei dizendo, calma e tranquila, os frequentadores daquele local, conversavam e riam, alegremente. Exatamente às 22 horas, pela principal rua que dava acesso à pracinha, apareceu um homem completamente nu, passeando displicentemente, com um leão preso em uma coleira. Essa cena assustou a todos, rapidamente o local ficou completamente vazio. Não se ficou sabendo se era essa a intenção do desnudo. Os horários desses acontecimentos ficaram marcados para sempre no folclore local, e ninguém duvidava disso.

Seu Juventino, morador daquele espaço, dado a uma bebedeira diária, dormia sempre sob um dos bancos da praça, e ninguém o notava, ele só aparecia já noite alta, quando não havia mais vivalma nas redondezas. Só não, aos domingos, estava sempre alerto, a respeito do homem nu e seu leão. Naquele domingo, a bebedeira passou das contas, dormindo que nem anjo em nuvem alta, o dorminhoco da praça, como era conhecido, ficou ali até depois das 22 horas daquele domingo, deitado sob o seu banco preferido, sem se dar conta do que estavam armando para ele. Com as garotas já em retirada, a caminho de seus lares, como mandava a prescrição estabelecida para aquele logradouro, era a ocasião ideal para expulsar, em definitivo, aquela figura nauseabunda dali.

Um grupo, composto por seis adolescentes, frequentadores assíduos das domingueiras animadas de conversação, chegaram de mansinho, trazendo um galão de tinta preta, alguns frascos de tinta fluorescente azul e também verdes, se aproximaram do velho bêbado, verificaram se o homem estava realmente dormindo. Constatado que sim, passaram a pintar as vestes rotas e sujas do dito cujo, tendo o cuidado para não o acordar. Pintaram seus cabelos e sapatos com a tinta fluorescente azul, os lábios e ao redor dos olhos com batom vermelho. Os braços foram pintados de verde fluorescente. A figura ficou assustadora, dava arrepios até nos adolescentes autores daquela brincadeira de mau gosto. O ato praticado naquela madrugada pela garotada, era ato de vingança pela molecagem do velho bêbado, que vez por outra vinha assustando as moças e rapazes frequentadores daquele local, tido para eles como sagrado.

A manhã chegava devagar, os primeiros raios de sol já iluminavam o horizonte, tinha início a caminhada daqueles que primavam por um corpo sadio, andando pela calçada da praça, para fortalecer seus músculos. Outros caminhavam rumo ao trabalho, sem pressa, mas dispostos a não perderem o horário. Aos poucos o movimento aumentava, gente para todas as direções, tudo ainda era calmo, o barulho produzido pelos carros já eram audíveis à pouca distância, a cidade acordava, o velho bêbado, sob o efeito da cachaça, dormia.

De repente, um cachorro sentiu o cheiro daquela figura asquerosa, sob o banco da praça. Com o latido do cão, o homem acordou, vendo-se deformado, colorido, levantou-se rápido, ficando a olhar para os passantes. Esses, por sua vez, ao ver aquela figura dantesca, àquela hora da manhã, puseram-se a correr também, provocando verdadeiro caos na praça. Os que a ela chegavam, sem mesmo saber o que estava acontecendo, dava meia volta e saía em disparada. Incorporava-se ali, mais uma peça ao folclórico daquela pacata cidade.

Gilberto Carvalho Pereira
Enviado por Gilberto Carvalho Pereira em 18/06/2024
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