COBERTORES AZUIS

A dona de casa Raquel de Oliveira, de quarenta e oito anos, quis dormir com o seu próprio cobertor quando cheirou nele o corpo do marido que, às vezes, também usa a mesma peça. A dona de casa Raquel de Oliveira está em uma fase que não tolera mais o cheiro do corpo do marido e sempre reclama da audácia do companheiro. Diz que vai ter que lavar o cobertor novamente e enquanto isso terá que dormir apenas com o lençol, apesar das noites frias.

A dona de casa Raquel de Oliveira sempre reclama da atitude do marido. “Por que você não deixa o que eu uso em paz? Chinelos, escovas de cabelo, fio dental...”

Antigamente ela não era assim. Gostava do jeito do marido, do seu cheiro. Precisava dele para dormir. Gostava do seu hálito. Hoje o mau cheiro exala pelo quarto, quando ela reclama que não pode respirar naquele ambiente e além disso não quer intimidades. Não quer mais beijar o marido nem em bons hálitos.

“Por que não se separam?” Raquel de Oliveira se questiona e ela mesma responde sua dúvida. Talvez porque ache que o marido ainda goste dela e, por piedade, mantém a fachada do casamento. Se amizade é quase amor...o que seria a piedade para a armação de um amor?

De qualquer forma o marido vive por perto. Não tão perto, embora dormissem na mesma cama. Isso faz Raquel de Oliveira olhar as fotografias antigas. Se o marido está próximo, ainda o chama para verem juntos os álbuns antigos de fotografias. “Veja essa minha fotografia segurando um ouriço do mar com as duas mãos! Eu estava bem bonita aqui. Você lembra o ano?”

“Por que não se separam?” Raquel de Oliveira se questiona e ela mesma responde a questão. Talvez para manter a família unida. Um pai longe pode ser fatal para o caráter dos dois filhos. Um pai e uma mãe vivos e na mesma fotografia abrem para os filhos uma ideia de permanência que será útil por toda a vida. “ Vejam vocês, para que ficar mudando de emprego todo ano? Eu e o pai de vocês, por exemplo, mantemos o mesmo casamento que, se não é apaixonante, pelo menos é assíduo”.

Hoje Raquel de Oliveira pensou por instantes no marido. A soma de instantes quase encheu o dia. Conclui que o marido é um velho, que ficou velho de dois anos para cá. As fotos antigas podem demostrar a velhice, a calvície e a solidão do marido hoje. Raquel odeia solidões. Odeia tanto que tem quatro amigas de muitos anos que sempre se veem e conversam sobre os maridos e ex-namorados. Nunca falam se estão felizes. A felicidade é uma coisa complicada para falar com outras mulheres, mesmo amigas íntimas, que não entenderiam a consistência da felicidade amiga. Nem mesmo Raquel entende essa consistência. Algo que apenas sabe não possuir direito. Se fosse feliz teria mais dinheiro? O dinheiro talvez fosse um diferencial para mais ou para menos; torna também as pessoas mais jovens. O marido deve ter envelhecido por falta de dinheiro.

“ Por que não se separa do marido?” Mas como ele viveria sem ela? Procurou no armazém de produtos naturais, um chá que dizem ser bom para demência. Traz o chá para o marido que, mesmo sendo ele um traste, é pai dos seus filhos que não poderão crescer tendo um pai demente, que não terá culpa pela demência. Coitado. Isso é piedade. Quase amor.

Tantas especulações e agora o cobertor fedido com o suor do marido. Se o marido fosse embora, não haveria suor e todas as coisas estariam no lugar correto. Se o marido morresse, não precisaria de seu bom dia, todos os dias. Contrataria uma empregada e poderia mostrar para ela as fotos antigas. “Nessa aqui estávamos no Chile. Ele tirou de longe, enquanto eu corria para abraça-lo.” Nesses dias de luto, Raquel desconfiaria então, tudo estaria em seu lugar para sempre. Menos as flores que espalhariam um mau cheiro pelo ambiente. Flores manteriam o mau cheiro do seu marido. Seria uma coisa difícil de explicar. A dona de casa Raquel de Oliveira pensará em uma rosa.

Rosas são rosas, mas precisam dos seus espinhos.

Paulo Fontenelle de Araujo
Enviado por Paulo Fontenelle de Araujo em 18/06/2024
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