LUMA, BICO e o PACIENTE
LUMA, BICO e o PACIENTE
O sol ainda não brilhava por completo, o primeiro dia da primavera estava chegando sereno. A claridade ia tomando lentamente o lugar da noite, mas Silva, como vinha fazendo rotineiramente nos últimos tempos, já estava sentado em sua poltrona predileta na varanda admirando a luz vencer a escuridão e o mar tocar o céu no longínquo horizonte.
Há meses, quando decidiu se aposentar aos sessenta e cinco anos e ir morar por uns tempos na sua casa de praia, Silva passou a seguir uma rotina simples: acorda todos os dias às cinco e dez da manhã, poucos minutos antes de ouvir o alarme do celular, levanta, caminha até a cozinha, pega uma maçã na geladeira e segue para a varanda, e lá fica por um bom tempo.
Por volta das sete horas, ele atende a ligação telefônica da Joana, sua ex-esposa, única pessoa com quem ele conversa sobre o seu tratamento de saúde, pois mesmo não tendo formação técnica na área médica ela detém um bom conhecimento sobre o assunto. Com o celular em viva voz, eles conversam diariamente por mais de uma hora. Sem interromper, Joana ouve as lamentações do ex-marido e o orienta de como cumprir as prescrições médicas.
Depois da primeira e normalmente a única ligação telefônica do dia, Silva continua na varanda apreciando, um pouco distante, as aves em seus voos rasantes no mar, e bem próximo, as borboletas e beija-flores no jardim da sua casa.
No seu local predileto da casa, a varanda, ele fica toda manhã: ora lendo, ora pensando, ora imaginando, ora cochilando...
Naquele primeiro dia da primavera, observando uma borboleta e um beija-flor, ambos com a coloração dominante no tom azul, voando lentamente bem próximo de si, Silva ouviu muito baixinho uma conversa ...
*****
“Eu sou Luma, sou da espécie Morpho, popularmente chamada de Borboleta Azul. E você?”
“Eu sou eu. Não sei o meu nome nem a minha espécie. Sei que gosto muito de sugar o néctar das flores.”
“Você conhece o Silva, aquele humano que está ali sentado nos olhando?”
“Não. É a primeira vez que venho aqui neste jardim. Frequento o quintal da casa ao lado. Por que perguntou isso, Luma.”
“Posso te chamar de Bico?”
“Você pode me chamar de Bico ou do que você quiser. Tá bom?”
“Tá bom, Bico.”
“Eu perguntei se você conhece o Silva porque acho que ele está pedindo a nossa ajuda. Repara como ele nos olha. Veja o semblante dele.”
“Luma, ele nos olha com os olhos. O que é semblante?”
“Deixa pra lá.”
“Bico, eu moro e vivo neste jardim desde que saí do casulo e todos os dias, um pouco mais cedo, escuto o silva conversar com a ex-esposa sobre os problemas que ele está enfrentando.”
“Luma, o que é ex-esposa?”
“Vamos fazer o seguinte, Bico. Eu vou te contar a história do Silva. Você, por favor, fique de bico calado enquanto eu estiver falando. Ao final, vou lhe perguntar se entendeu e se pode ou não ajudar o nosso paciente. OK?”
“Ok, Luma. Pode contar.”
“Mas, o que é paciente?”
“Depois você vai entender. Agora, permaneça quieto e de bico fechado.”
“Vou começar.”
“Vou reproduzir, de forma resumida, os diálogos que tenho ouvido nos últimos dias entre Silva, o nosso paciente, e Fabiana, a ex-esposa.”
***
“Alô! Oi, Fabiana. Tudo bem?”
“Oi, Silva, Aqui estamos todos bem. E você? Conseguiu diminuir os analgésicos?”
“Ainda não, continuo tomando a mesma dosagem a cada três horas. Mas, colocando as duas pernas em cima da almofada, conforme você sugeriu, tenho dormido um pouco melhor.”
“Ótimo saber que você está conseguindo descansar à noite. Seja positivo, Silva, o pior já passou. Recentemente, você venceu duas longas internações hospitalares e três laudos de biopsias. Agora você está diagnosticado, fará as duas cirurgias e em breve retornará à vida normal.”
“Fabiana, ontem à tarde recebi o resultado da última tomografia. E nada é tão ruim que não possa piorar, terei que fazer mais uma cirurgia. Agora serão três procedimentos cirúrgicos com anestesia geral. Não é a quantidade que me deixa preocupado, porque sei que há pessoas que realizam muitas cirurgias ao longo da vida. O que me deixa um pouco para baixo é saber que esses procedimentos precisam ser executados quase que seguidos um do outro com intervalos mínimos, apenas o tempo de recuperação. Somente quem está vivendo um sofrimento como este ou pior poderá compreender o meu desânimo que vez por outra se apodera de todos os meus pensamentos.”
“Silva, eu sei que ainda tem alguns obstáculos no caminho, mas como você repete constantemente não há outra via, não há como desviar, não há uma brecha. Se você não seguir em frente vencendo os desafios, poderá até permanecer vivo, mas estar vivo é bem diferente de viver.”
“Quando vivíamos juntos, quantas e quantas vezes ouvi você repetir em conversas comigo ou com nossos amigos que a vida de qualquer ser é uma centelha que logo se esvai em uma escuridão. Então, não se pode perder tempo deixando a vida acontecer, é preciso fazer a vida acontecer para se viver o que há para viver.”
“Silva, saia do buraco, não fique com pena de si mesmo. Faça o que for preciso ser feito. Busque esperança e boas energias em seus pensamentos.”
***
“Bico, Você entendeu a situação do Silva?”
“Não. Nem a dele nem a da Fabiana. Só compreendi que alguém está precisando de boas energias, e isso eu posso oferecer, Luma.”
“Parabéns, Bico você entendeu tudo.”
“Num voo bem lento, Vamos nos aproximar o máximo do paciente. Quando estivermos quase tocando nele, você o oferece boas energias e eu a esperança. Certo, Bico?”
“Certo, Luma. Mas não sei quem é o paciente.”
“Tá bom. Bico voe ao meu lado.”
*****
O céu do amanhecer, do segundo dia da primavera estava terminado quando Silva atendeu a ligação telefônica:
“Alô, Silva.”
“Oi, Fabiana, Tudo bem?”
“Percebo pela sua voz que seu astral está bem melhor do que ontem. Você está transmitido boas energias e esperança quando fala, Silva. Alguma novidade?”
“Não, Fabiana. Tudo na mesma. A minha próxima ida ao hospital será depois de amanhã.”
“Ah! Sim tem uma coisa que mudou. Agora estou dividindo o espaço da varanda com dois amiguinhos: a Luma e o Bico.”
Sérgio Coutinho