Laguinho
Se voce eh daquelas pessoas que nao suportam ler alguma coisa sem acentos, por favor, nao prossiga. O teclado que estou usando esta temporariamente sem acentos. Eu tambem odeio... mas vamos ao "laguinho":
Naquele dia ela acordou pensando: "quero mudar de vida". E decidiu comecar pelo relacionamento laguinho de filme americano que mantinha havia algum tempo. Queria mais peixe, mais movimento, mais bichinhos de barranco.
Levantou com muita preguica, arrastou-se ate a cozinha e nao esperou a agua ferver o suficiente para preparar o cha. Precisava fazer uma lista dos pontos positivos e negativos do laguinho.
Como o ser humano sempre eh pessimista, apesar da divulgacao bombastica e epidemica de "O segredo", ela iniciou a lista pelos pontos negativos num papel de pao. Opa, nao era papel de pao. Papel de pao eh surrado, eh cafona. Eh letra de pagode: "eu te desenhei num papel de pao... bla bla bla". Entao ela pegou uma folha de fichario da epoca do colegial que tinha o ursinho Puff desenhado no canto inferior direito e comecou. Pelos pontos negativos, claro.
Detesto quando quero discutir uma coisa e ele nao responde, so me olha estatico como se eu estivesse falando tcheco. Nenhuma resposta. Nenhuma reacao. Nada. Nenhuma brigazinha. Nenhum tempero. Nem um tempero. Eh. Nao ha pimenta. Fico puta.
Outra: eh um comportamento absurdo ele fingir que nao ha mulheres a cada lugar que vamos. Como?! Nem olha para as saias curtas e os vestidos. Para os decotes maravilhosos carregando sutias numero 46. Ah, mas ele acha que me engana, o infeliz. Eu prefiro a honestidade. Olho mesmo. Eh assim que a natureza vai. O cara eh tao topetudo que quer desafiar as leis de coisas estabelecidas entre o pessoal nu e a cobra no Paraiso. Petulancia pura.
Ai, tem uma que me da desespero. Se eu perguntar a data de aniversario da minha mae, ele nao vai saber, e eu sei tudo sobre a mae dele! Mas pergunta que dia o Pirapozinho ganhou a Copa-Qualquer-Coisa de 1964 e vem na hora. Pa. Ali. Realmente isso precisa de um fim.
O que realmente me irrita a ponto de escrever essa lista eh alguem nao saber a diferenca entre pijama, roupa social e casual. Como pode um individuo dormir com a camisa que eu dei de presente? E aquele dia que eu cheguei com aquela camiseta verde linda e ele, saindo do jogo de futebol, vestiu-a ali mesmo?! A coitada, como uma esponja, sugou todo o suor do rapaz em segundos e provavelmente seria o pijama daquele dia. Eu sou uma martir.
Num acesso de raiva, ela nao notou que eram 7:30 da manha num domingo e ligou para o alvo de sua furia. Teria uma atitude bem masculina. Ensaiou o discurso nos tres minutos que se seguiram desde o momento em que tirou o telefone do gancho, os seis toques e a voz amanhecida dele do outro lado. Com aquela lista era facil discursar sem erros e com a persuasao de Hitler.
-- Alo?
-- Oi. Olha, tenho uma coisa pra conversar com voce.
-- Julia? Bom dia!
-- Bom. Entao, pensei muito e tomei umas decisoes.
Na verdade, entre a decisao de escrever a lista Puff, os pensamentos sobre ele e a conversa ao telefone, a soma dos minutos foi de dezessete.
-- Posso te ligar em cinco minutos? Preciso mijar. Nesse minuto!
-- Ah! Eh exatamente sobre isso que quero falar e vou fazer isso pelo telefone pra doer.
-- Doi mesmo, porque eu to segurando... eh um minuto!
Aquele barulhinho insuportavel de telefone batido no folego.
Entao ela decidiu vestir-se de um modo provocante e passear sozinha pelas ruas dominicais. Quentes. Cheias de criancas, bicicletas e familias. Resolveu usar o telefone de novo, mas dessa vez quis ligar para o cara que ha anos comentava sobre alguma coisa nela que chama a atencao. Ela nao lembrava de onde conhecia o rapaz, nem quando e nem a razao, mas lembrava vagamente da cor dos olhos e que ele tem um tique de colocar o dedo indicador entre a boca e o nariz numa expressao de concentracao pura. Mesmo que fosse para ver as horas.
Ela liga. O rapaz atende prontamente, surpreso, sem esconder o arfar do peito e eles marcam um encontro num tradicional parque com um laguinho americano. Ela tem certeza que ele vai saber fazer de uma tarde morna de domingo uma festa na praia. Com banda. E camarao. Sorvete e calor.
Enquanto ela espera sentada num banco de madeira umida (talvez por causa da respiracao do laguinho), uma sensacao de triunfo eh impossivel de ser contida. Eh esse o passo certo. Aquele cara que nao conversou ao telefone porque o banheiro era mais importante nunca foi o encaixe. O encanto acabou e ninguem percebeu. Ele se acomodou, nunca mandou flores, nunca comprou chocolate, nao escreveu um unico cartao, dorme demais, ronca e fala enquanto estes dois ultimos acontecem, gosta da cerveja mais barata, escuta aquelas musicas em que se ouvem todos os barulhos menos uma voz, nao tem um carro ainda e, pior do que tudo isso junto, usa meias pretas e marrons.
Os minutos passam e o rapaz dos olhos nao chega. Sera possivel que ela ficaria sozinha no final de tudo? Nao era bem assim que tinha pensado.
O celular toca. Eh o rapaz dos olhos.
-- Estou na frente do parque. Aconteceu um acidente. Estou esperando a ambulancia atender o menino.
Que jeito de comecar um primeiro encontro! Ela caminha tristemente ate a entrada do parque, preocupada com o acidente (mais precisamente se vai arruinar seus planos) e enjoada da vidinha bege que levava.
Eh. Voce acertou. Que pessimismo! Voce ja leu "O segredo"? Animo!
Mas eh. O menino caido no chao com a bicicleta azul prensada contra o asfalto sujo e seu proprio corpo usava meias pretas. Na verdade, uma preta e outra marrom. No bolso da camisa xadrez uma rosa vermelha amassada. No bolso da bermuda rasgada um cartao: "Fiquei com saudade de ontem pra hoje. Amo voce, mas ve se nao engorda, hein?". O cartao era quase impossivel de ser lido... estava todo manchado de chocolate branco, o unico que ela realmente adorava, alem daquele garrancho que soh ela decifrava.
Entao Julia percebeu que gostava do laguinho e que tinha peixes e bichinhos de barranco suficientes. Percebeu tambem que o encanto definitivamente tinha acabado, dessa vez sem que ela tivesse decidido, quando o sangue comecou a ensopar sua sandalia.
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Ah, nao. Nao foi assim. Na verdade, o moco dos olhos nao pode comparecer porque esqueceu que tinha a guarda do filho de cinco anos naquele dia. Por esse motivo, Julia foi pra casa e encontrou seu laguinho sentado na sacada. Sentado no chocolate, claro. Por isso o cartao realmente era dificil de ser lido.
Mas ela leu. Nasceram peixes. Houve um jantar e uma rosa murchando por duas semanas em cima da pia da cozinha. Uma cerimonia em que as meias pretas finalmente eram necessarias e elegantes.
E eu podia ser a filha, neta ou qualquer descendente perdida em outro seculo contando essa historia com a minha imaginacao acrescentando todos os detalhes e as metaforas. Mas eu nao sou. Eh cafona. Eh muito Titanic, sabe? Entao voce escolhe.
Moral do conto: espere a agua ferver o suficiente para preparar o cha.