O Quarto do Meio
Entre o passar o natal com a família e ir ao enterro do meu pai, eu não tinha dúvidas, comeria uma bela ceia como fazíamos todos os anos. Foi minha filha Tatiana quem me convenceu a fazer esta caridade.
Sentindo o abraço gostoso da minha filha eu pensava em como a rodoviária é cheia nessa época do ano.
- Vá mamãe, todos os passageiros já entraram.
Seco suas lágrimas com uma das mãos enquanto com a outra ajeito meus óculos neblinados pelo momento.
- Vou comprar a passagem de volta somente quando resolver toda burocracia. Mas não se preocupem, porque volto a tempo de preparar a ceia. O ônibus manobra para a viagem e eu penso porque afinal fui atender aquela bendita ligação do meu primo.
Vinte anos e quase nada mudou. Penso enquanto subo a ruazinha deserta com o suor brotando da testa. Minha boca é deserto e meus passos são cada vez mais lentos. “Ah meus vinte e poucos anos”! Giro a cabeça de um lado para o outro em busca da fonte da vida, a água nossa de cada dia. “Droga, nem um mercadinho nos arredores”! Um sabiá alegra o ambiente enquanto uma cigarra invejosa entoa um canto interminável de uma nota só. Apesar do esforço e dos oitenta graus sobre minha cabeça sinto a doçura da brisa em meu rosto, o balé do vestido sobre meu corpo e a dança dos meus cabelos de Iracema que já foram bem maiores.
Apesar dos passos curtos, herança da minha mãe, já caminhei bastante. “Prometo nunca mais praguejar contra o transporte público”. Penso, ajeitando a mochila em minhas costas e colocando a bolsa para frente. Artifício de mulher de cidade grande.
Ouço latidos ininterruptos. Olho para trás. Vejo um homem caminhando apressado sem dar a menor bola para o totó. Murmura alguma coisa que não consigo entender. O suor em minha testa agora é frio que vem lá do sul. Apresso o passo. Meus olhos grandes de jabuticabas buscam refúgio de um lado a outro da rua. Tudo fechado. Os passos estão cada vez mais próximos. Agora consigo entender alguma coisa que ele fala. São frases soltas “É três e meia que eu chego lá. Não quero ninguém esperando por mim”. Agora estamos lado a lado. Seu olhar atormentado me paralisa. Sinto o cheiro do medo e perco o controle das pernas que caminham mecanicamente. Segundos são horas. O homem esboça um sorriso vazio e com voz grave diz:
- Boa tarde senhora.
- Boa tarde. Respondo com a voz trêmula. Ele se afasta a passos largos tratando de questões imaginárias complexas.
Um pouco mais adiante volto no tempo: “É a casa da madrinha Júlia”! Exclamo com voz sussurrante, esquecendo qualquer resquício do suspense de momentos atrás. O muro não existia, mas do pouco que se nota, as janelas continuam iguais, assim como o telhado. Meu olhar perspicaz escaneia tudo à minha volta. O pé de manga da casa do seu João, o pé de amora da dona Lourdes, o tronco de árvore que servia de banco na casa da Martinha. “Foi ali que quebrei meu braço quando tinha seis anos”. Relembro. “Se a casa da Fernanda está aqui...” Penso. “O portão só pode estar, só pode estar... Ali”! Ainda é o mesmo, apesar da tinta nova. Sussurro congelada no tempo. Um rio represado se forma sobre meus olhos. Meu pensamento passeia por um passado abandonado. Brincar de esconde-esconde, passar anel, queimada... fazer guisado na casa da vizinha. Aninha, era o nome dela. Minha melhor amiga. As cadeiras na calçada, as histórias que mamãe contava em volta da fogueira. Papai apenas ouvia, sempre foi muito calado. Vez em quando arremessávamos gravetos ao fogo só para vermos as faíscas subindo. A primeira amizade colorida com um menino, o primeiro beijo e a primeira das grandes surras também.
Bato palmas em frente ao portão. Um cachorro voa para me receber, mas pelos latidos e grunhidos acho que o seu desejo é me ver bem longe.
Um homem aparece na porta e me fita por alguns segundos, como se lesse meus segredos. Também leio os seus. É o Paulo, meu primo por parte de pai que estava à minha espera como combinado. Éramos bem próximos até os meus 11 anos. Na adolescência os quatro anos de diferença foram fundamentais para um certo distanciamento. Ele se aproxima, ajeita a gola da camisa polo azul ao mesmo tempo em que me recebe com um sorriso largo, abre seus longos braços, aperta-me contra seu peito e diz:
-Prima, que saudade, você está ótima!
-Pois é, o tempo também foi gentil com você! Respondo enquanto o rio represado em meus olhos rompe a barragem, arrastando a fortaleza que eu fingia ser até aquele momento.
Meu primo me ajuda com a mochila e os dez metros do portão até à porta parecem quilômetros. “Como cresceu esta goiabeira.” “A cor da casa mudou. Achei mais bonita, sempre gostei de azul turquesa”. “Azul é cor de menino, Fernanda”! Dizia mamãe. Padrões, nunca os dei importância. Mais uns passos e sinto o cheiro do jardim de arco-íris acarinhar minhas narinas e enfeitar a vista. Fecho os olhos e deixo que o ar puro acaricie meus pulmões.
- Entre Fernanda.
Desperto-me do transe. Não há mais o jardim, apenas algumas espadas de São Jorge que me fustigam o peito.
Caminho em direção à porta. Um, dois, três degraus. Entro. Um passo, dois passos titubeantes e meus olhos impacientes cessam a busca. À minha frente, na parede central da sala o retrato antigo de mamãe e papai desenhado à grafite. Vendiam-se muito desses quadros antigamente. Mamãe está linda como sempre, apesar do desgaste do papel cicatrizando seu jovem rosto. O quebradinho no vidro, perto da gravata de papai continua lá. Lembro quando a bola o atingiu. Foi eu quem a arremessou enquanto brincava com meu irmão. Mas naquele dia joguei a culpa nele e vice versa. “Deve ser o sol, você sabe que vidro não aguenta tanto calor.” Disse mamãe a papai livrando-nos a ambos do seu chicote severo. Estico um sorriso.
Papai tinha voz de trovão, cabelos ralos, orelhas finas e olhos estreitos. Sempre confundiu respeito com temor. Esse era o mundo que lhe fora apresentado desde criança. Mas uma coisa não posso negar, nunca nos faltou boa comida, material escolar, “Se emprestar lápis de cor vai ficar sem até o final do ano”, dizia mamãe. Amava as roupas novas no Natal e no aniversário. Enfim, tínhamos tudo que um trabalhador classe média baixa era capaz de comprar. Mas havia a outra face, a do autoritarismo, da violência, do machismo. Um copo quebrado era um berro, uma resposta atravessada e o cinto cantava, uma proximidade maior com algum menino e...
Encostado na parede lateral à minha direita, um sofá. Não é mais o marrom. Coloco minha bolsa sobre ele ao lado da mochila. À minha esquerda, em cima de uma mesinha com o pé direito descascado, uma TV bem mais moderna do que a que eu guardo na lembrança. Do lado, a Bíblia antiga de mamãe. Limpando as lentes dos óculos dou alguns passos em sua direção. Salmo 23, como mamãe sempre deixava. Com a mão direita abaixo do meu nariz, cobrindo boca e queixo, meus olhos derramam saudade. Paulo aproxima-se e com suas mãos afetuosas acaricia meus cabelos me trazendo conforto.
A cristaleira continua imponente no corredor. O banheiro é o mesmo. Azulejo estampado em florais como o da novela noturna, tal qual queria mamãe. “Olha esse chuveiro, Fernanda. Não é você que paga a conta de água”. Ela gritava. “Tô saindo mamãe”. Dizia eu antes de ficar mais uns 15 minutos.
O primeiro quarto quase em frente à cristaleira era do meu irmão. Disse que ia dar o último pulo na cachoeira. Foi a primeira tempestade que devastou a família. Uma sombra gélida envolve meu coração. Nheéééque, faz a porta enquanto a empurro, exitosa. Coloco apenas a cabeça para dentro. Não é mais o mesmo quarto. Não serve como aposento. Vejo apenas teias de aranhas descansando sobre o que um dia foram móveis.
O quarto do meio eu refuto, sigo reto como uma perspectiva reversa em direção ao seu ponto de fuga.
O Último quarto é o de mamãe e papai. Nhééééque. Entro com passos felinos. A primeira cena é um filme completo. Os banhos forçados para tirar dos pés as crostas de terra vermelha da rua. “Mamãe se molhava mais do que eu”. Penso enquanto se desenha um sorriso nostálgico em meu rosto. Um pé tamanho 21 navega um scarpin 37, o primeiro batom nos lábios, nas bochechas, no queixo e até na ponta do nariz, o laço novo no cabelo em ocasiões especiais. O primeiro sutiã, o primeiro biquíni, o primeiro amor de verdade, o primeiro segredo de quem despojou-se da pureza e desabrochou para o mundo.
Os últimos raios de sol iluminam a face do despertador antigo sobre a cômoda. São 17:20, mas ele teima em marcar 11:15. Arrasto os pés até a cama. Um calço no pé traseiro a mantem nivelada. Inclino-me levemente e passo a mão sobre o lençol agradável ao toque. Sento-me. Continuo acarinhando a cama enquanto lá fora a mangueira mais antiga conversa com a brisa que embala suas folhas.
No guarda-roupas rústico apenas peças masculinas maltratadas pelo tempo. “Espere aí, o que é aquilo?” Bem lá no fundo um pedaço de renda branca desperta minha curiosidade. Afasto as roupas que estão mais à frente na fileira, puxo o cabide com todo cuidado e a saudade abraça meu peito com a mesma força com que abraço o vestido de noiva de mamãe. Única peça feminina no guarda-roupas.
- Fernanda? Meu primo me chama da sala. Ligaram da funerária. Já está tudo pronto.
- Já vou. Feito uma mãe ao colocar seu bebê no berço, pouso o vestido onde sempre estivera.
No instante em que fechava as portas notei quatro caixas de madeiras camufladas aos pés das roupas. “Depois vejo o que há ali dentro.” Pensei enquanto terminava de fechar a porta. “Melhor agilizar os preparativos para receber o corpo. Amanhã vejo as outras questões burocráticas. No máximo em dois ou três dias estarei de volta.”
A caminho da sala minhas pernas travam em frente ao quarto do meio. Olhos fixos no nada, um, dois, três segundos, giro a cabeça para o lado e encaro o passado. Atravesso o portal. Fora a opacidade do ambiente cujas cores foram roubadas pelo tempo, tudo está quase exatamente como me lembrava. Até o lençol de luas e estrelas que estendi sobre a cama pela última vez. No quartinho aconchegante restam apenas a cama, o guarda-roupas e a cortina de rendas branca.
O medo, o último segredo, a revelação, a decepção, o derradeiro castigo. “Pare Alfredo! Ela é sua filha homem! Eu só te contei porque a barriga dela já está aparecendo! Pelo amor de Deus! Minha mãe era o próprio desespero. Meu pai não dizia uma só palavra e eu sentia muito mais a fúria lunática dos seus olhos do que o peso dos golpes por todo meu corpo. O clarão na janela, três segundos depois o estrondo. Caía o mundo lá fora, mas era dentro de mim que a tempestade fazia estrago. Pela segunda vez temporal na família. O primeiro foi a morte do meu irmão.
O chicote quebrado, a espada de São Jorge caída, o hematoma no olho, o sangue na boca, as malas na porta, a alma aos pedaços. Não me recordo como nem quando cheguei até a sala.
- Fernanda. Fernanda. Meu primo me chama estalando os dedos em frente aos meus olhos.
- Estou bem Paulo, que horas é o velório?
- A chegada do corpo está prevista para as às 22h.
- Ok, vamos terminar logo com isso.
Velório e enterro saíram como previsto. Nem mesmo o receio de ser apontada como filha ausente se confirmou. Fiquei aliviada, afinal nem todo gato pingado que esteve presente à cerimônia conhece ou se lembra da minha história.
Pela manhã Paulo me deu carona até a casa de papai e em seguida levou o cachorro para a casa dele. Peguei toalhas e roupas limpas. Precisava de um banho. A água massageia minhas costas depois de um dia com o mundo sobre os ombros. “Não imaginava que ele acabaria solitário no fim da vida, afinal, tinha tantos amigos. Tem a tia Marlene e o tio Expedito que ainda são vivos”. Esfrego o sabonete na barriga. “Tomara que eu consiga dormir à noite. Agora ensaboo pernas e pés...” “Terminando aqui vou ligar para a Tatiana para dizer que ainda hoje vou comprar as passagens”. Como contorcionista passo o sabonete nas costas. “Se não fosse o Paulo ele seria enterrado praticamente com indigente”. A agua escorre pelo meu corpo levando a espuma e parte da angústia de um passado presente. “Será que a Tati já comprou tudo para a ceia? Deixei a lista sobre o micro-ondas”. “Cabelo oleoso demais”. Encho a mão com xampu e faço uma automassagem. Desligo o chuveiro. “Ah, as caixas no guarda-roupas”!
Enrolo-me na toalha, coloco outra sobre a cabeça. Pego as duas primeiras caixas. “Droga, tudo empoeirado, deveria ter tomado banho depois que mexesse com isso”. Sento-me na cama, passo a mão sobre a tampa da caixa, removo a poeira e crio coragem para encarar no passado. Abro a primeira caixa e meus olhos surpresos encaram a montanha de cartas. Seguro uma na mão e incrédula leio: Remetente, “Alberto Vicentino de Lima”. Destinatário, “Fernanda Soares de Lima”. A carta escapa da minha mão e deita sobre a cama. Pego outra carta, e outra, e outra, e mais outra...São dezenas! Dias, meses e anos diferentes. Abro a outra caixa sem me preocupar com a poeira. Mais dezenas de cartas! Minha pernas me arrastam em direção ao guarda roupas. Ajeito a toalha que ameaça cair do meu corpo e volto com as duas últimas caixas. Ponho ambas sobre a cama e abro cada uma em sequência. Confirmado, mais cartas e todas endereçadas a mim, mas sem constar o endereço do destinatário, afinal papai não tinha a menor ideia de onde eu morava.
Com a alma trêmula e as mãos tímidas levanto a primeira carta sobre a minha cabeça e contra a luz natural que invade o quarto pela janela. Abaixo as mãos e com toda cautela rasgo a capa que esconde um passado que desconheço.
“Perdão Minha Filha! ” É o título da carta. Sinto um frio glacial sob o peito. Meu coração dispara como um corcel selvagem. A carta treme em minhas mãos. Continuo a leitura. “Talvez o meu maior erro não tenha sido as agressões, mas sim ter a expulsado da minha vida sem saber que na verdade perdia um pedaço de mim. O meu melhor pedaço.” Sigo lendo e começo a entender um pouco mais a história da minha família. Uma história que não via mais como minha.
Entre outras coisas a carta falava de como minha mãe morreu menos de um ano após a minha partida. De como o remorso fez papai se isolar de tudo e de todos. Brigou com amigos, com os irmãos, com os familiares. Talvez buscasse uma forma de se martirizar pelos erros do passado.
Pego o telefone e com o dedo apressado ligo para o meu primo. “Sei. Sei. Humrum. Humrum. Entendo. Obrigado por tudo, Paulo. ” Ele não sabia nada sobre as cartas e não passou meu endereço para papai. Mesmo porque seria impossível. Só conseguiu me localizar há três dias, quando papai já se encontrava na UTI.
Eu não sabia, mas o Paulo é policial na cidade vizinha. Então, de posse dos documentos de papai não foi difícil me localizar. Meu pai ficou internado por nove dias. Uma enfermeira, amiga colorida de Paulo, desconfiou do sobrenome em comum, além de achar que havia uma certa semelhança entre ambos. Meu primo confirmou o parentesco e ficou responsável por meu pai. No quinto dia de internação de papai ele conseguiu entrar em contato comigo. Nesse primeiro contato, refutei veementemente voltar à cidade. Disse que meu pai havia morrido há muito tempo. Como dito no início, foi minha filha Tatiana que me convenceu a vir ao enterro após meu primo me avisar do falecimento.
Só agora percebo o amargo na língua e a aridez na boca. Pego todas as caixas e as deixo empilhadas no sofá. Dirijo-me até a cozinha. Só então me dou conta de que ainda não havia visitado esta parte da casa. A geladeira é nova. Peguei a água mais gelada para me refrescar. Nem parece que acabara de tomar banho. O fogão a gás também é outro, mas o fogão à lenha é o mesmo. Vejo as chamas vivas sob as panelas quando mamãe fazia galinha caipira. “No gás gasta muito”. Dizia ela. Bebo uns três goles grandes de água e a dor nos olhos denuncia a sinusite. Caminho até a porta da cozinha segurando o olho esquerdo. “Tá mais quente que ontem”. Penso encostando o copo gelado algumas vezes no meu pescoço e no meu rosto. No quintal, o forno à lenha é apenas escombro, mas mesmo assim sinto cheiro de bolo fresquinho, de biscoito de polvilho, de pão caseiro...O cheiro gostoso de capim cidreira vem da horta mais ao fundo do quintal. “Ainda está no mesmo lugar”. Penso. Tem salsinha, couve, alface, cebolinha...
Sentada no sofá, abro outra carta. “Ah, um cigarro até que cairia bem! Para com isso Marlene Você parou de fumar há mais de dez anos”. Leio mais uma carta e outra e outra e outra... “Talvez se tivesse sido menos rancorosa”. Reflito que havia muito brutalidade e autoritarismo em meu pai, mas pode ser reflexo da sua história de vida. Quem sabe uma vítima da cultura de violência do patriarcado corrosivo de antigamente. Ou talvez não. Talvez fosse só um tipo de psicopatia mesmo.
Continuo a leitura. O celular toca ao meu lado uma, duas, três, quatro vezes. Olho de soslaio. É a Tatiana. Atendo.
- Tudo bem mamãe, já comprou a passagem?
- Não minha filha. A burocracia aqui está bem maior do que eu imaginava. Vou demorar mais do que o previsto. Não me esperem para a ceia de natal. Respondo com um olhar reflexivo para as pilhas de cartas à minha volta.