Nem tão igual, nem tão diferente
O vento frio soprava suave, estava sentado na portaria do meu prédio esperando a minha esposa chegar quando o portão principal abriu e minha vizinha Virginia, jovem talentos estudante de arte, acenou pra mim.
Era amiga da minha filha, dia dos namorados, data complicada pra ela, porque já sabia do namoro dela escondido com uma estudante de medicina que para a família ela apresentava como a melhor amiga.
-Oi doutor – disse descontraída, estava arrumada pra festa, bem maquiada, cabelos pretos, sorriso tímido, muito magrela, dessas que o vento pode carregar, se não me engano estava com vinte anos.
-Oi Virgínia – disse ao ver que ela audaciosamente sentava ao meu lado.
-Está esperando sua linda mulher? - ela falou sorrindo.
-Sim, é noite do dia dos namorados – eu disse – não é porque temos mais de vinte anos juntos que não vamos aproveitar.
-Hum… eu queria também, o senhor sabe da minha namorada Ana, acho que todo mundo sabe menos meu pai e minha mãe – ela olhou para baixo visivelmente chateada.
-Ainda não falou para o seu pai?
-Não, ele é antigo, um pastor, preso nessa cultura judaico-cristã, homofóbico, acredita no regime militar, tem medo de vacina, quase surtou quando fiz a minha primeira tatuagem, não, não, surtou primeiro quando falei que ia fazer arte - lembrei de uma das poucas passagens bíblicas que sabia de cor: Matheus 7:15 "Acautelai-vos, porém, dos falsos profetas, que vêm a vós vestidos como ovelhas, mas interiormente são lobos devoradores" , diante do meu silêncio ela revirou os olhos e mudou de assunto. - O que te chama mais atenção na sua esposa, sempre tem alguma coisa ali que só quem ama vê?
-Profundo isso - disse e depois de pensar um instante respondi:
-O sorriso, com certeza o sorriso, como prende o cabelo naquele dia de faxina, das opiniões firmes, quando brigamos ela pede desculpa e diz: “você está certo”, aí é porque estou super errado. – Viajei na sequência de elogios a minha amada, então olhei para aquela jovem, triste, encabulada e desfigurada, falei em tom mais baixo - Virgínia, Virgínia, são tantas coisas que tenho pra falar dela, no mundo em que sobrevivo ela tem que existir.
Virgínia sorri.
-O que gosto na Ana são aqueles olhos grandes, a boca, fico olhando para a fotografia dela e penso que tenho muita sorte.
-É... sei como é isso – entendia o que ela estava passando.
-Vocês têm uma música?
-Não, não temos. Se tivéssemos seria Days Are Numbers pra mim, ela ia preferir uma das músicas que o Nando Reis fez para a Marisa Monte que ele namorou no início dos anos 1990, ou ainda uma do Djavan, no quesito gosto musical, nem tão distante,nem tão próximos.
Ela pegou o celular e leu: “música 'Days Are Numbers (The Traveller)' do The Alan Parsons Project é uma meditação poética sobre a natureza efêmera da vida e a jornada constante de autodescoberta. Através da figura do viajante, a letra explora a ideia de que estamos sempre em movimento, buscando algo além do horizonte, sem muitas vezes compreender plenamente o propósito ou o destino dessa busca incessante”, putz!
-É uma metáfora para olharmos para o que interessa, viajar é legal, porém se achar a quem se ama é o que importa – disse com a voz firme.
-Legal, você estão nessa dos diferentes se atraem.
-Mais ou menos, na verdade os diferentes se conhecem, hoje gosto mais de sertanejo que antes e ela anda escutando umas internacionais. Você e Ana têm uma música?
-Kiss Me More – ela balançou a cabeça – eu choro quando escuto, quando calha de nascer gay é como ser um ET, pro meu pai é falta de cinto, porrada e minha mãe acha que é pecado, assim que eles falam quando um gay aparece na TV.
-O que aconteceu quando você falou com seu pai da tatuagem?
-Quase arrancou a minha cabeça, depois respirou fundo e fez um sermão, no final aceitou.
-Então – eu disse -as pessoas não são tão iguais, nem tão diferentes, importa muito para um pai ver a filha feliz, se fosse você faria uma tentativa – apontei para o celular – manda uma mensagem conta tudo de uma vez.
-O quê? Ele me mata!
-Manda a mensagem e espera a reação, quando um pai não permite que a filha converse com ele olho no olho por medo tem alguma coisa errada.
O que pra mim parecia fácil para ela era como mover uma montanha, levantou os olhos do celular e me perguntou:
-Qual a tatuagem o doutor faria se um dia batesse uma loucura?
-V de vingança em homenagem aquele filme – disse – ele representa todos nós, o V, um carismático defensor da liberdade disposto a se vingar daqueles que o desfiguraram. Claro que o filme é uma metáfora sobre o controle, não deixe o seu pai desfigurar você, ajude o seu pai a entender que uma relação não pode ser de dor e ressentimentos, porque no futuro ele pode se arrepender.
Ela sorriu ao digitar algo com bastante destreza no celular, após terminar a mensagem levantou a cabeça e me olhou nos olhos.
-Vou falar hoje – disse fazendo um aceno para minha esposa que chegava e completou – eu vou fazer essa tatuagem do V de vingança para me lembrar sempre do que falou doutor, ninguém vai me desfigurar nem mesmo o meu pai.