O suicídio
Do trigésimo andar ela olhou as luzes da cidade. Admirou a beleza que emanava dos painéis de neón. Luzes coloridas espalhadas nos out-doores gigantescos. A cidade era um grande emaranhado de luzes e cores. Ela sentou-se perigosamente na sacada, que não tinha protecao nenhuma. Riu da própria imprudencia, orgulhou-se de sua coragem. Coragem dada pela mistura louca de uísque e cocaína. A noite estava apenas comecando e ela já tinha tomado metade de uma garrafa de uísque e cheirado pelo menos três carreiras do pó branco espalhado sobre a mesa de centro.
Conseguira comprar um pó de primeira qualidade e estava adorando a sensacao de euforia e encantamento que estava sentindo.
Acesa apenas a luz de um pequeno abajur, seu apartamento se encontrava numa ligeira penumbra. Ela escolhera aquela noite para fazer o que sempre tivera vontade desde adolescente: suicidar-se.
Sim, era isso mesmo! Suicidar fora o que sempre sonhara! Dar um fim em tudo, ficar inerte, totalmente inerte, imóvel, sem respirar, sem pensar, sem sentir absolutamente nada. Desconectara da tomada o telefone para não ser incomodade nesta noite tao especial, em que resolvera se matar.
Sem cartas, sem bilhetes, sem telefonemas, sem telegramas. Não deixaria uma pista, palavara ou dica qualquer.
Queria ir embora como alguém que que parara em certa pousada num certo caminho e simplesmente não amanhecera. Quando o dono da estalagem o procurara não encontrou sequer um sinal de que um viandante houvera passado pôr ali. Já houvera preparado tudo antes. Arrumara a cama deixando-a impecável, lavara toda a louca e certificou-se pôr duas ou três vezes que os móveis, inclusive, os bibelôs estavam todos em seus devidos lugares. Prepara-se para a morte desde manhãzinha quando acordara. Agora estava faltando pouco para o seu momento final. Nenhuma mágoa, nenhum sofrimento, nenhum arrependimento sequer. Estava invadida de uma certa excitacao pôr estar saboreando antecipadamente o que estava prestes a acontecer.
Ninguém saberia de seus motivos porque ninguém fora um dia sequer capaz de perceber as intencoes que sempre morara dentro dela.
Ela há muito se prepara para o fim. A morte sempre a habitara e fora um suplício viver todos esses anos. Como fora difícil sentir sua presenca chamando-a, alertando-a, conquistando-a sorrateiramente. Como fora difícil viver sem atender ao seu chamado. Quantas e quantas vezes ela tivera que tampar os ouvidos, dormir entorpecida pôr conta de calmantes para evitar aquele chamado. Todos que a conheciam ignoravam essa proximidade com a morte. Pensar em morrer, em vez de deixa-la aflita, sempre a deixava calma, serena, tranquila. Mas é que cansar de esperar o seu dia, as sua hora da partida. Agora resolvera, ela mesma, fazer a sua hora de ir embora para sempre. Levantou-se da sacada e foi até o banheiro. Mirou-se no espelho e gostou do que viu. Sua maquiagem estava irrepreensivel, irretocável. O vestido branco que estava usando modelava admiravelmente seu corpo moreno bonito e cheio de curvas. Voltou ã sala e debrucou-se sobre a mesa e usando um tubo de caneta vazio aspirou mais uma fileira de pó. Fechou os olhos e sentiu uma doce vertigem. Quando esta passou veio uma sensacao de bem estar. Da sala olhou mais uma vez a cidade. As luzes espocavam diante de seus olhos, dentro de sua cabeca. Deu uma risada alta e teve vontade de dancar. Conhecia bem esse efeito. Colocou um cd de dancing music e comecou a requebrar lentamente. Seus movimentos foram ganhando entao a velocidade da música que tocava. Dancava como nas discotecas. Sem deixar de dancar foi até o bar e serviu-se de mais uma dose de uísque. Olhou o relógio da parede e certificou-se de que naquele instante eram exatamente vinte tres horas. Ainda dispunha de uma hora antes de sua morte. Tudo correra tao bem. Alugara aquele apartamento há exatamente um mês atrás.
Dia após dia, noite após noite, ela sentara na sacada todas as noites se deleitando com a idéia de voar, sem asas, do trigésimo andar.
Quando o corretor de imóveis fora lhe mostrar o lugar, fizera acertadamente um comentário em tom de brincadeira: “___Uma ótima vista, um bom lugar pra se morar e um péssimo lugar para se pensar em voar!
Péssimo nada, pois fora justamente com esse objetivo que ela houvera alugado o imóvel. Agora faltava menos de uma hora. Terminou a dose de uísque e foi até a cozinha lavar o copo. Tudo estava tao limpinho que dava gosto de ver. Era assim mesmo que tinha concebido tudo.
Enxugou o copo e devolveu-o a prateleira. Foi até a sala novamente, tomou a garrafa de uísque em suas maos e foi sentar-se na sacada
Já devia Ter transcorrido cerca de meia hora, portanto faltavam somente mais trinta minutos. Bebericava lentamente o uísque na boca da garrafa. Olhou a garrafa quase vazia e lembrou-se de que os que estao perdidos mandam mensagens através delas. Não era o seu caso. Não estava perdida no mar da vida, não precisava mandar mensagens. Seu rumo estava certo, sua pequena embarcacao sabia para onde queria ir, e ela estava dirigindo-a rumo a esse norte que ela tao bem sabia e queria. Estava deixando propositalmente o mar da vida e entrando em outro mar, de onde ninguém jamais voltara e nem pudera jámais mandar noticias. Um grande mar desconhecido onde ao longo da história da humanidade milhões e milhões de pessoas tinham ido navegar.
Um mar imenso onde todos sabiam que um dia fatalmente iam Ter de ir banhar em suas águas. Quantos não sofreram em vista desse momento, dessa passagem? Quantos não foram os que aqui ficaram e choraram sofreram também? Quantos não foram os que gritaram improprérios aos deuses pôr saberem que estavam próximos de realizarem essa viagem? Quantos não foram os que se arrependeram, os que pediram perdão, os que se redimiram, os que imploraram, os que se descabelaram, os que se revoltaram, os desesperancados que mesmo assim pediram para não irem?
Não era seu caso certamente, pois não sofria, não padecia de nenhuma dor, não sentia nenhum desespero.
Foi entao que pensou em tantas outras noites de natais que haviam passado e ela permanecera viva, apesar de desejar ardentemente morrer.
Daqui há pouco ela atenderia ao chamado da morte e realizaria o seu mais secreto desejo. Lembrou-se de quando ainda era pequenina e todos estavam eufóricos porque era dia de natal. De repente ela foi acometida de uma tristeza súbita. Uma tristeza aparentemente sem razao de ser. De repente as coisas haviam perdido o sentido de ser e de existirem. Ela foi ficando pequenina, pequenina. Parecia que o mundo a comprimia lentamente. Alegou cansaco e retirou-se para o seu quarto. Recostou a cabeca no travesseiro e ali chorou intensamente. Lá na sala, seus familiares festejavam e riam porque era natal. Ela não compreendia porque riam se o natal era tao triste?
Como poderia alguém rir no dia de natal se o natal era pura dor e sensacao de vazio? Não se pode esconder a tristeza em canto algum. Os copos de vinho, as tacas de champanhes, a mesa farta não são suficientes para espantar a tristeza que acompanha o natal. Foi nessa noite que a morte comecou a realizar seu chamado. A saída parecia ser a morte. Foi assim que ela e a morte se encontraram. A morte passou a viver dentro dela .
Foi assim que passara todos esses anos esperando que um dia a morte sorrateiramente a atingisse. Como aguardara ansiosa que a morte que morava dentro dela, se retirasse e de fora viesse cumprir o seu papel. Tal fato, pôr mais que aguardasse, não acontecera; pôr outro lado, a morte não desaparecera e continuara crescendo, crescendo, crescendo dentro dela, até toma-la pôr completo.
Sua morte vinha de dentro, não em forma de cancer ou qualquer outra doenca incurável. Vinha de dentro em forma de um desejo que a cada dia se avolumava mais. Bem, agora faltava pouco.
Nunca mais sofreria de solidão em noites de natais. Nunca mais aquela sensacao horrivel de ser abandonado, de ir diminuindo de tamanho até ficar menor que a cabeca de uma alfinete, aquele vazio intenso, indescritivel, um silencio que a oprimia e a esmagava de encontro a parede.
Consultou o relógio de parede novamente. Faltavam pouquissimos minutos. Ela se levantou, subiu na sacada e ficou equilibrando-se perigosamente. Fechou os olhos para não sentir vertigens e cair antes do momento. Seu coracao batia calmamente e ela estava invadida pôr uma sensacao de paz. Seu corpo moreno dentro do vestido branco impecavel.
Quando os fogos de artificios coloriram a noite anunciando o dia do nascimento do Cristo, ela abriu os graciosamente como um pássaro que abre suas asas para o voo, descalcou com os próprios pés os sapatos que usava, olhou para o céu , deu um sorriso, balbuciou feliz natal e se lancou premeditadamente para um voo breve, trágico e leve, em direcao a frieza da calcada.