Onde Deus deu um pingo de solda
Meu pai era comerciante. Viajava vendendo tecidos, enxada, foice e machados. Certa vez, chegou de viagem trazendo consigo um garoto negro de uns quinze anos. O crioulo havia comprado tecidos e como não pudera pagar, o avô sugeriu que papai levasse o menino para trabalhar até pagar a conta. Inicialmente, papai recusou-se, mas o garoto mostrava-se inclinado a acompanhá-lo. Sabia que seu credor era comerciante, e, por conseguinte, poderia proporcionar-lhe melhor passadio do que lhe era possível ter com seu avô. Chegou reforço para me ajudar na roça. Pensei.
Meu novo amigo atendia pelo nome de Firmino, mas logo lhe veio o adequado apelido de “Bambu”, pois tinha porte avantajado. Era aproximadamente cinco anos mais velho. Esperto, trabalhador e de boa índole, ajudava mamãe nos serviços domésticos de pilar arroz, milho e carrear água do rio para casa, além de assumir comigo a tarefa de cuidar do gado e dos outros animais. Naquele dia, mamãe disse: “Firmino, vá buscar água no rio e leve a mula para pastar na roça.” Como a roça era caminho do rio, montamos em osso na mula, levando uma lata para trazer água. Durante o percurso, a lata vazia bateu no lombo da mula e fez com que ela se assustasse e saísse numa disparada aterrorizante. O chão foi nosso colchão. Caí. Ele caiu em cima de mim. Fiquei por baixo com a cara enfiada no chão. Saí dali gemendo, sem localizar a dor, pois todo corpo parecia doer. Quando cheguei em casa, minhas irmãs viram que meu braço estava despencado, ombros desalinhados e andando atravessado, feito caminhão com parafuso de centro quebrado. Chamaram minha avó. Ela trouxe uma solução caseira: sumo de jenipapo do campo, talos de carnaúba para imobilizar o ombro e uma tipóia para apoiar o braço. Não deu certo! Era preciso soldar os ossos, mas eles estavam desencontrados. Finalmente, depois de muitos dias a capengar de dor, chega um amigo de meu pai.
- Antônio, se você quiser curar Diassis, tem que fazer um garrote. Amarre uma corda de um caibro ao ombro dele, passando por baixo do sovaco e dê uma laçada. Vá controlando na corda. Puxe até o braço voltar pro lugar. Depois, faça nova entalação. Prenda bem o ombro, daí a trinta dias o menino tá bom e você pode tirar as talas.
Meu pai laçou o caibro, amarrou meu ombro, deu uma laçada e puxou. Cada puxada provocava uma dor terrível daquelas que o cabra solta um ai sem querer. Só não fiz o serviço na roupa porque não tinha material pronto. Por fim, um estalo e um alívio, tudo estava no lugar. Após um mês, não sentia mais nada, nenhum incômodo, apenas um nó como um caroço de pitomba marcou, por algum tempo, o lugar onde Deus deu alguns pingos de solda.
LIMA, Adalberto, SILVA, Francisco de Assis et al. O Brasil nosso de cada dia