NOJO

Geni continuava com um medo imenso do namorado. Várias vezes, nos últimos dias, se recusara a abrir a porta de entrada da sua casa, o coração galopando de temor… Desde que ele a abraçara e tentara violá-la, que ela foi tomada de uma instintiva repulsa, vivia para a próxima tentativa dele.

Paulo já tentara beijá-la mais que uma vez, mas sempre sem sucesso… As vezes que suas mãos, que ela considerava imundas embora estivessem lavadas, com a justificação da paixão tentavam percorrer seu corpo, ela ficava a tremer, quase sufocava num misto de terror e repulsa.

A última vez que tal assédio acontecera, foi na cozinha. Paulo, bastante maior que ela, que tinha um corpo franzino, deitara-a sobre a mesa da cozinha e tentara chegar à sua intimidade, mas Geni debateu-se estoicamente e fruto de uma forte joelhada, conseguira afastá-lo, prostrando-o no chão com a dor. Ele, aturdido, levantara-se e saíra de casa a cambalear.

Depois disso, esteve algumas semanas sem aparecer. Ela não lhe atendia o telefone, vivia isolada com pavor de se encontrar com ele na rua. Ultimamente nem sequer compras fazia, telefonava para a pequena mercearia da rua, encomendando alguma, pouca comida, não perecível, e recebia os víveres na porta, depois de imensos cuidados para se certificar que não era o Paulo que de novo tentava invadir a sua habitação. Quem costumava fazer as entregas era o Luís, o marçano, recebia o dinheiro e entregava a caixa com a comida, regra geral, um saco de pão e enlatados.

As várias notícias alertando para um crescente número de violações aumentava o seu temor e assim, sempre que tocavam à sua campainha, a adrenalina era tal que quase desmaiava.

Um dia em que a eletricidade faltou e já tinha anoitecido, embora ainda só fossem dezanove horas, tocaram à porta. Geni tinha acabado de tomar banho, enxugara-se à pressa e de roupão mal fechado e cabelo a pingar, apesar de saber ter feito mais uma encomenda, espreitou diversas vezes mas no átrio do piso onde morava, não via ninguém, nenhum movimento sequer, tudo às escuras.

Esperou mais um pouco, espreitou de novo pelo óculo da porta e não vendo ninguém, mesmo assim decidiu-se a entreabri-la, colocando meio corpo quase no exterior.

Um vulto caiu sobre si, sentiu um hálito quente no seu pescoço e mãos ansiosas percorrendo o seu corpo que acabou por ser desnudado. Instantaneamente recuou e deu dois passos até à cozinha. Tinha os movimentos quase presos mas mesmo assim, arrastando-se, conseguiu chegar junto da gaveta dos talheres, que estava entreaberta. Rapidamente meteu a mão e em instantes pegou no cabo de uma grande faca de cortar pão, com que espetou repetidas vezes o corpo do outro que a subjugava.

Sentiu o sangue correr nas suas mãos, pernas, bem como o agressor desfalecer no chão de azulejo, que aos poucos ficou molhado, totalmente ensanguentado, tal a quantidade derramada dos golpes.

Geni, na obscuridade, às apalpadelas, sentou-se a um canto da cozinha, chorando e dando largas à emoção sentida. Esteve assim mais de meia hora, tremendo e sem coragem para olhar na obscuridade para tentar perceber o vulto imóvel do outro.

Entretanto a luz veio de repente e a iluminação deu para perceber o corpo ensanguentado caído ali perto, de costas para ela.

A medo, gatinhou até chegar junto do vulto, com cuidado para não se sujar no sangue que se tinha espalhado por larga área do chão e espreitou o rosto do agressor. Ficou sem fala, sem ar, quando reconheceu o corpo caído. Era o Luís, o marçano da mercearia!

Aos poucos, foi-se lembrando dos olhares lascivos que o outro por vezes lhe deitava, sobretudo quando ia à mercearia fazer rapidamente as compras. Nunca ligara, obcecada com o assédio de Paulo.

Então chorou bastante, ao reconhecer que tinha cometido um crime, tinha morto um ser humano.

Telefonou para o 112, comunicando o sucedido e entretanto, constatando a sua nudez, pegou num vestido e preparou-se para enfrentar a realidade.

A razão de ser da classificação deste conto tem a ver com a vulgaridade com que crimes violentos contra as mulheres são cometidos, nomeadamente a violação. Este é um exemplo que sai da norma, pois a mulher conseguir triunfar nesta luta desigual é mesmo invulgar.

Talvez que a penalização mais forte e exemplar possa suprimir esses desejos compulsórios que acometem gente sem escrúpulos nem noção, dissuadindo-os desses crimes, mas o ideal seria que a consciência tomasse conta do quanto errado é esse acto repelente.

Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 10/06/2024
Reeditado em 12/06/2024
Código do texto: T8082831
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