EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE (LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (X)

EXISTENCIALISMO E PSICANÁLISE

(LUCY IN THE SKY WITH DIAMOND) (X)

SOMOS TODOS hospedeiros de um pesadelo que permeia a existência de todas as espécies de hominídeos, a começar por mamãe Lucy Australopiteco. A humanidade de hoje é produto da desumanidade de ontem. Mama Lucy mantém o mundo girando. Seus herdeiros da pátria atual ainda afirmam a sobrevivência selvagem dos caçadores e comedores de carne vermelha crua. Os caninos do Homo sapiens diminuíram em tamanho, mas os caninos longos de sua selvageria primitiva estão logo abaixo da aparência civilizada que ele mantém ao vestir o terno e a gravata para o trabalho na Bolsa.

OS ESQUEMAS PSI de percepção do mundo ainda são os mesmos de há 3,2 milhões??? É possível que mamãe Lucy Australopiteco tenha tido, há 3,2 milhões de anos, percepções mentais semelhantes à do poeta Robert Lee Frost em seu poema. Seus versos passaram pela cabeça de mama Lucy que em seu sono tão primitivo sonhou semelhante:

“A FLORESTA é linda, escura e profunda/Mas tenho promessas a cumprir/E quilômetros a percorrer antes de dormir/E quilômetros a percorrer antes de dormir”. Lucy certamente dormia, mas não sabia o que era dormir. E muito menos sabia ao que era sonhar. Mas mesmo assim terá sonhado correndo desesperadamente em fuga de perigos primitivos. Queria salvar-se. Salvar sua vida, ainda que não soubesse o que a vida poderia, de muitas formas diferentes, significar.

LUCY CORRIA, e corria por sobre galhos caídos de árvores frondosas que haviam caído, atingidas por raios na noite escura e profunda, passada numa caverna, talvez sozinha e apavorada com raios e trovões nas trevas apavorantes de um mundo aterrorizado por poderes indecifráveis, ainda hoje. Ela estava encolhida, tensa, em posição fetal. Seus pelos, sua pele grossa, não eram suficientes para abrandar o pânico. Olhos esgazeados, as partes baixas do tronco ainda ressentindo-se das penetrações de seus pares, os machos menores e o macho alfa do bando.

LUCY NÃO podia chorar, talvez não tivesse sensibilidade para tanto. Mesmo tão dolorida e ferida, ela desejou ter a companhia de um de seus violadores contumazes. Ela daria um jeito de agasalhar-se em seu tronco, sonharia, quem sabe ao certo, com um mundo futuro no qual pudesse sentir-se mais protegida. Um mundo em que os estupros não fossem tão amiúdes, um mundo no qual a violenta reação imprevisível do macho não fosse causa de feminicídios contumazes.

QUANTAS VEZES quantos corpos ela havia visto quebrados e abandonados pela raiva e o ódio ensandecido do macho que se sentira furioso por algum motivo fútil, tinha torcido um braço, quebrado um pescoço, desfigurado um rosto de uma jovem australopiteco do bando. Ela ficava em pânico e apavorada, mas, ao mesmo tempo não sabia o que era pânico nem pavor. Ela continuará, por tanto e imenso tempo, sendo vítima de seus companheiros de grupo sobrevivente. O caçador em busca da caça. O caçador que, por sua vez, também virava caça de animais ferozes em busca de vítimas para devorar seus membros retirados dos corpos por mordidas sanguinárias, truculentas, mesmo quando ainda permaneciam vivos e cúmplices dessas práticas atrozes.

TANTO TEMPO depois, 3,2 milhões de anos mais tarde, o feminicídio ainda grassa nas casas, apartamentos e cafofos das cidades do século XXI. A modelo Lucy, que vivia confortavelmente no céu de uma sociedade infernal, com diamantes adornando-lhe o colar no pescoço delgado, também tinha sido trucidada num momento de surto do milionário que a havia chamado para um programa em que drogas faziam parte do entretenimento carnal. Lá estava ela, bela, as pernas cruzadas em xis, em meio a cacos de vidro de uma mesa no meio da sala de jantar decorada com papel de parede a reproduzir uma floresta linda, escura e profunda.

ANTES DO último suspiro, a modelo Lucy lembrou e lamentou as promessas que ainda teria de cumprir, os quilômetros de vida que poderia ter vivido a percorrer antes de dormir, lamentou o sono definitivo nesse corpo belo e em pânico, os olhos arregalados, as pupilas dilatadas pela cocaína aspirada a estimular o sistema nervoso central. Lucy, Lucu, a mãe da humanidade ainda morre devastada pela virulenta ansiedade primitiva que faz do Homo sapiens dito moderno, um primata de há 3,2 milhões de tempestuosa existência.

AS MEMÓRIAS do medo ancestral ainda sobrevivem e agem nas entranhas das partículas subatômicas do corpo que parecem ter vida eterna. A imortalidade da ansiedade e do medo acompanha as mais recentes gerações e seus surtos de insanidade. Essas gerações não desconhecem a existência do carma, mesmo assim desafiam os arquivos de suas malfeitorias, sabendo que elas voltarão, mais cedo ou mais tarde, a assombrar de forma regressiva, sua existência inexistente. Inexistente porque repetitiva, retroativa de ações costumeiras anteriores que voltam contra si mesmos, impedindo a evolução de suas próprias vidas.

A FLORESTA da selva de pedra é cinza, escura e profunda, mas o poeta que nela persiste, possui promessas a cumprir e quilômetros a percorrer antes de dormir. E quilômetros a percorrer antes de dormir.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 07/06/2024
Código do texto: T8080357
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