NUM FRENESIM

“Talvez Deus fosse um habitante desta cidade estranha e pouco virtuosa, cujas casas cinzento-acastanhadas eram como a pele seca dos gafanhotos.Deus era, como Lucio, um homem solitário e perdido, alguém que sabia que alguma coisa estava errada mas não a podia corrigir, um homem no meio de sonâmbulos, passos do tempo e adversidades da vida – quem lhe dera poder fugir de tudo isso, esconder-se em lugares de calor e luz.”

Tennessee Williams,A Noite de Iguana e outras histórias

(tradução de José Agostinho Baptista para a Assírio e Alvim)

Basicamente e sem saber muito bem ele tornara-se um cuidador de adoráveis criaturas à sua volta desde humanos com incapacidades atestadas (ou não), a felinos cabriolas de grandes vibrissas.

Por vezes, também ele vogava em muitas águas reais ou imaginárias, transparentes ou tenebrosas.As águas raramente permaneciam calmas.

A Mónica do conto de Sophia entrava-lhe pela janela adentro e punha-se a tagarelar no seu estilo chique e ele ficava arrepiado com a sua actualidade, sessenta anos da publicação dos seus Contos Exemplares.

Por exemplo,porque a sua amiga Mafalda andava sempre num frenesim:

- Não ,querido, esta sexta-feira, não me dá jeito.Resolvi fazer um brunch à última hora à beira da piscina para os amigos do Leonardo.Não posso baixar a guarda.Mil perigos à espreita.Tenho que estar de vigia permanentemente.

- Então e para a semana?

- Para a semana, ele vai em viagem de negócios e eu vou com ele.

-Então e a criança também vai?

-Não.Vou deixá-la com os padrinhos.

- Ai Mafalda!Que fadiga eterna!

Mafalda atirara com uma carreira na advocacia às urtigas e investira toda a energia em agarrar e casar com um milionário.Tal como a Marilyn, a Bacall e a Betty Grable das belas pernas no clássico de Hollywood. Fora bem sucedida mas dava-lhe um trabalho insano.Apanhara um empresário, recém abandonado pelo cônjuge que se enamorara de um qualquer manhoso e que o deixara meio à deriva e com uma calvice irreversível.Bernardo tinha a vantagem de não ter filhos e uma orientação sexual bifurcada.Deu um trabalhão enlaçá-lo, casar com ele e conseguir engravidar para garantir o futuro,já ambos à beira dos cinquenta anos.

-Ai filha.sim, é uma vitória mas o meu receio é que tenhas que te espremer tanto para parir o bébé que fiques como uma passa engelhada e sêca.

-Vira essa boca para lá, demónio perverso.Afinal, és meu amigo ou não és?

-Bem, pelo menos faz todos os exames incluindo aquele ao líquido amniótico.

-Claro que sim.Julgas que eu sou parva?

-Eu sei que não és.Conheço-te há séculos, desde o tempo da faculdade, lembras-te?

Mafalda não era só uma guerreira como uma verdadeira lutadora.Conseguira atingir os objetivos e mantinha Bernardo de rédea curta no controle da sua riqueza herdada de negócios mafiosos e com uma actividade empresarial subterrânea de que se falava o menos possível e de que ninguém nunca percebia muito bem afinal o que ele fazia ao certo.

Fazia-o viajar sem lhe dar tréguas, para ele se cansar e não poder esvoaçar para algum sitio inconveniente.Ainda com o bébe a usar fraldas já tinham dado praticamente a volta ao mundo e ido quatro vezes aos Estados Unidos, passado férias em Itália e nas Ilhas Gregas, viajado até à Patagónia e atravessado a Muralha da China.Sem deixar de passar temporadas no Alvor e ficar praticamente com mês e meio por ano para ir ao escritório, fingir que ia trabalhar.

-Bem, então alinhavamos o nosso almoço para daqui a um ano e depois logo se vê – atalhou ele e desligou a chamada.

Mas com a sua outra amiga e ex colega de trabalho, a jovial Maria da Purificação à beira de fazer oitenta anos era quase a mesma coisa.

Andava sempre em viagem.

A despeito dos seus seis filhos, na realidade três pares de gémeos e vinte e quatro netos, cansara-se de acorrer à competição desenfreada que a pusera a fazer de nurse por todos eles e andava, num frenesim, entre o Alto Minho e a bacia do Guadiana, a defender uma séria de causas desde a construção de uma ponte no sopé de um monte entre duas aldeias esquecidas até a um maternage social de viúvas fósseis endinheiradas , apaixonadas por e rendidas a mulheres a dias de nacionalidade brasileira com a séria perspectiva de lhes fazerem um testamento , deixando de lado as pretensões legítimas de irmãos e sobrinhos.

- Então Maria será que podemos encontrar-nos esta semana?

- Esta semana não, Jorge.Estou em Loulé e para a outra vou com o meu marido de noventa anos a Lamego comprar queijo.

- Mas que energia, meu Deus.Eu se andasse a esse ritmo já estava morto, pela certa.Ou em coma, pelo menos.

Nem com o seu velho amigo Duarte que ele conhecia quando foram ambos colegas numa cooperativa de ensino do bas fond quase fora da capital e da qual os dois tinham riscado do curriculum e da sua experiência docente.

- Então não queres ir ao Teatro?

- Eu quero mas tu desmarcas sempre.

-Eu???!!!

-Não.Eu!Não me digas que já não te lembras?Será que eu também já estou assim como tu?A perder os filtros, ter falhas de memória,?Então é o fim!

- Jorge, não sejas dramático.Estás a exagerar.Eu só desmarquei uma ida a um espectáculo uma vez.

-Não Excelência.Oito vezes pelo menos.Não és tu que dizes que tenho boa memória?

-Aliás, uma memoria impressionante,Uma memória de elefante,

- Exactamente. Já desmarcaste à ultima hora pelos mais diversos motivos.Porque o teu gangue de amigos gay te desafiou para um jantar ou para irem para o Meco correrem nuas , desculpa, nus, pela praia,porque engataste um tipo no grindr, por que foste com a tua amiga Beatriz de Castela comprar enchidos nomeadamente chouriços a Trás os Montes ou porque vais em viagem com o teu amante galego porque não conseguem estar parados e quietos ou em Vigo ou em Lisboa. Caraças!

As pessoas andavam loucas a correr de um lado para o outro. A viajarem num desvario como se fossem tirar o pai da fôrca como se não houvesse mais amanhã e sentissem uma necessidade de se exibir e mostrar aos outros que voavam mais alto ou mais longe.

Talvez desejassem ser eternas, agarrar as estrelas, tocar no azul do céu.

Ele aceitava aquilo com displicência, tristeza e progressiva indiferença.E talvez porque soubesse que o melhor e o pior se encontravam igualmente, aí e noutro sítio, a Norte e a Sul, num continente ou nos outros, ainda que separados pela imensidão de mares e oceanos, em horizontes infindáveis e sem sentido.

José Manuel Serradas
Enviado por José Manuel Serradas em 05/06/2024
Código do texto: T8079144
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