A virada

Estou com medo de abrir os olhos e a dor voltar a consumir meus neurônios. Os pingos de sangue escorriam até o ouvido, mas antes que pudesse alcançá-lo eu os resgatei com os dedos sujos e trouxe até minha boca: era sangue, o meu sangue. Há um nevoeiro nas lembranças, uma confusão entre passado, presente e futuro. Tudo começou quando abaixei o olhar por alguns segundos fisgado pelas notificações infindáveis que vibravam daquele aparelho. Não havia ninguém na estrada, nada que eu pudesse atingir com aquele caminhão pesado e carregado de outros seres vivos. Foi como se tivessem colocado tudo ali de propósito e quando voltei meus olhos para frente, o susto, o freio, a virada súbita do volante, a batida inevitável, o deslizamento, o tombo, uma, duas, três vezes girando, apertado pelo cinto de segurança e acompanhado por vidros estilhaçados que voavam em câmera lenta ante minha visão petrificada. Os pensamentos nunca pareceram tão velozes quanto naqueles instantes. Eu sabia que a morte estava próxima, pois o filme começou a rodar impiedoso: meu pai me segurando pelo braço minguado de criança magrela aos cinco anos, minha mãe aos prantos quando recebeu a notícia que o caminhão de meu pai capotara, o enterro, os cheiros diversos que depois de ir a alguns muitos velórios descobri que era o cheiro da morte – café, chá, flor da saudade, frango ensopado, fogueira queimando. Os velórios da minha infância eram todos iguais. E o meu velório? Senti que estava tão perto de acontecer, um solavanco mais forte, um repuxo no estômago, a cabeça pendurada, o mundo visto de outro ângulo e, finalmente, o caminhão estacionado no final da ribanceira. Eu ainda estou vivo, foi este o primeiro sinal de que ainda havia consciência. Meu filho me espera, o segundo pensamento. Tentei reconhecer o espaço, o corpo, o tempo, contudo os olhos não conseguiam ver. Desespero. Medo de mexer os braços e provocar mais uma rodada de capotamentos. Não seria possível, mas eu não duvidava do meu próprio azar. Ou seria da minha própria sorte? O suor quente escorria. Não era suor, era sangue. Meus dedos moveram-se instintivos para proteger o ouvido. O sangue tem gosto bom. Meu sangue. Meu filho me espera. Desespero. Mais uma tentativa de sair. Medo. Coração ainda bate, estou vivo. Arrastei-me o mais distante que pude até não aguentar sequer o movimento da respiração. Olhei o veículo pesado cheio de porcos e só então consegui captar seus grunhidos, alguns escapando pelos matos, outros presos na gaiola do caminhão, todos em desespero. Vi-me igual. Tudo igual. Apenas minha mente funcionava, meu corpo jogado, exaurido, estendido. O clarão cegou-me e o estampido da explosão ensurdeceu-me. Escuridão.