O ANJO DA ESQUINA

Meu novo endereço tem ruas largas e bem sinalizadas, com árvores frondosas dividindo duas vias e um extenso canteiro com gramas e flores. Os caminhantes acordam cedo, num despertar combinado com os animaizinhos e seus donos, que descem sonâmbulos dos prédios para cumprirem suas rotinas e passeios. Num ciclo diferente, quase sabática, chego sempre um pouco depois deles, sem compromissos com horários e obrigações, a não ser com a escrita. Essa não largo.

Em todo tempo, desde que aqui cheguei, um homem na esquina, entre um centro comercial e dois grandes condomínios, vive suas manhãs ao lado de uma pequena mesa dobrável de madeira, com umas cinco ou seis bíblias, de diferentes tamanhos e modelos, enfileiradas e ao alcance de quem passa. De onde estou, cá do outro lado na padaria, não consigo enxergar a placa, que possivelmente deveria conter o valor dos livros ou as formas de pagamento. Pensei: - sou da palavra, ele também, devíamos nos conhecer. Entretanto, entre a decisão tomada e o encontro, passaram-se alguns dias e o homem inventou de sumir. Intrigada, passei a ficar de tocaia na esquina, vigiando sua chegada. Nada. Eu que me virasse com minha curiosidade.

Meus dias seguiram desobrigados de desvendar qualquer mistério, até que, assim como um sinal divino, vejo-o sentadinho no banco de madeira, com a serenidade de um eremita, só que conversando animado com uma jovem policial que fazia sua ronda matinal. Já chego pegando o final da conversa dos dois, mas meu olhar fixa na plaquinha em cima da mesa, onde se lê: Venda, empréstimo, doação. A moça, que deve ter lido a mensagem antes de mim, e deve sofrer da mesma falta de visão espiritual, ri, incrédula, da inabilidade comercial daquele senhor, tão simples e ingênuo. Ela indaga:

- Se eu quiser comprar, o senhor vende a bíblia. Se eu a levar emprestado e não te devolver, então o senhor está me doando. E quem vai querer comprar se pode ganhar?

De perto, juro, o homem parecia muito mais celestial do que do outro lado da calçada, o que o fazia reluzir a cada olhar que nos dirigia, fazendo-o sagrado e sobrenatural, como uma poesia cantada ou um hino entoado por muitas vozes numa catedral. Enquanto olhava para nós duas, com ternura de um pai paciente, estendia as mãos em nossa direção, em silêncio, com dois de seus livros sagrados. Depois disso nunca mais o vi.