O Dilema

Estavam embalados por um silêncio sepulcral em uma fria madrugada de sexta para sábado num lúgubre quarto de motel barato em algum lugar de São Paulo. Glauco acendeu as luzes inferiores do recinto, arrumou seu travesseiro e descansou sua cabeça sobre seu braço. Ela ainda parecia dormir.

- Vou ligar o rádio – murmurou ele, a beijá-la.

- Não, amor – retrucou ela, preguiçosamente. – Eu quero apreciar este momento sem ruídos.

Nesse ínterim, ela abraçou-o e deitou sobre seu peito. Glauco permanecia calado. Meditativo. Não retrucou a princípio, porém parecia incomodado.

- Por que me chama por “amor”?

- É um modo carinhoso, Glauco – ela redarguiu, a aconchegar-se mais, puxando o lençol que os cobria.

- É-me incômodo isso – exclamou ele.

-Por quê?

– Porque nos conhecemos há menos de um mês! E não acredito nessas coisas...

Suzana levantou-se num átimo. Acendeu as luzes superiores e sentou-se na cama, a cruzar os braços.

- O que você quer dizer?

- Já ouviu falar em Bauman? Quero dizer, a liquidez das relações é uma grande porcaria, porém é uma realidade. E olhe que estamos em pleno século vinte e um e ele escreveu aludindo ao fim do século vinte!

Ela vasculhou a bolsa que trouxera consigo e dali tirou um maço de cigarros.

- Não entendo as paranoias que você tem de vez em quando.

Glauco não replicou.

- Tudo para você é motivo de uma grande tragédia. Você não experimenta a felicidade. Só vive se queixando, se fazendo de difícil...

- Não é questão de queixa, é questão de constatação. E, súbito, a vida resulta em grandes tragédias.

Ela acendeu o cigarro.

- Não é bem por aí. Ao invés de ficar consumindo essas coisas que só te deixam para baixo, poderia ver, ler ou ouvir coisas mais alegres.

- Lembra o dia em que me fez assistir ao Rei Leão?

- Sim, e daí?

- Daí que a natureza de todas aquelas ações a cargo de Simba vem de uma tragédia familiar! Um irmão que mata o outro para destroná-lo e, assim, consegue colocar todo um reino às favas!

- É apenas um filme infantil, Glauco – replicou Suzana.

- Nada disso. Aquilo é a usurpação eufemista de uma ideia shakespeariana de excelência. Sobre a natureza da corrupção e do vilipêndio humano.

- São felinos, Glauco!

Antes de responder, Glauco seu respirou profundamente, a espantar um pouco de fumaça de cigarro que lhe entrava pelas narinas e disse-lhe:

- Aquilo é uma metáfora, Suzana. Nunca assistiu ao Hamlet?

- Não... – ela disse.

Glauco calou-se.

Como que por uma salvação do destino, seu celular começou a tocar. Como nunca atendia às chamadas de primeira, esperou tocar mais duas vezes até atender. Para desencargo de consciência, vide a hora que era naquela madrugada, muitos seres humanos entrariam em desespero, porém a Glauco já não lhe ocorriam emergências humanas essenciais – tais como cuidar de pais ou atender a alguma esposa neurótica preocupada com suas andanças noturnas. Havia muito estava só neste vasto mundo.

- Uma emergência? Agora? Claro. Já estou a caminho – falou ele.

- Vai me deixar aqui sozinha?

- Vou. Te ligo na segunda-feira.

Ele desligou o telefone.

- Nem ouse – Suzana replicou, a se levantar.

Glauco adentrou o banheiro do motel e regulou a água quente. Em menos de cinco minutos saiu, a desperdiçar todos os produtos de higiene que ali estavam dispostos.

Trocou-se rapidamente e despediu-se de Suzana – pela última vez.

***

Desembarcou do táxi em frente ao edifício de Paula – com quem estivera alguns dias antes. Tocou o interfone e não demorou muito para que o porteiro abrisse a cancela. Caminhava em dúvida em direção ao bloco da outra amante. Apertou o botão do elevador, a esperar sem ansiedade. Que urgência seria aquela que Paula não quisera dizer ao telefone? O elevador chegou, a porta se abriu e Glauco adentrou-o.

Não demorou muito para que batesse, por três vezes, a porta da mulher. Detestava a música da campainha que tocava no apartamento de Paula.

Ouviu seus passos acercarem-se à porta. Então, ela a abriu.

- O que foi? – perguntou ele, a adentrar o apartamento e a vasculhar todos os lugares. – Que emergência é essa? Parece tudo tranquilo por aqui.

Em silêncio, ela o abraçou e o beijou com ternura.

- O que está fazendo? – inquiriu ele. – Você me disse que aquela era a última vez!

- Eu sinto a sua falta, Glauco.

Glauco deu um profundo suspiro. Caminhou até a adega de Paula, tirou um Jim Beam dali de dentro, pegou um copo e preencheu-o até a metade.

- Eu não acredito no que estou ouvindo – replicou ele. – É muito para uma noite só – parecia falar sozinho.

- Você estava com alguém antes de vir aqui, não estava?

- Eu? – engasgou-se ele com o uísque. – Não, devia ser o barulho da tevê.

- Você replicou a pessoa, Glauco – ela respondeu.

- Ah, devia ser a coordenadora da faculdade falando comigo pelo viva-voz do outro celular. Estávamos conversando sobre uns relatórios que tenho que entregar até segunda-feira e...

Ele parou e refletiu um pouco. Então, continuou:

- Por que te estou dando tantas explicações? Nós nem temos nada.

Paula olhou-o nos olhos e acercou-se. Pegou-lhe as mãos e acariciou-as em silêncio.

- Quer se casar comigo?

Glauco esquivou-se de suas mãos, pegou o colo de uísque e engoliu-o num átimo. Não demorou muito para que preenchesse outro copo.

Começou a murmurar a si mesmo:

- Estou diante de um dilema existencial agora. Uma me chama de amor; a outra, que me mandara ao inferno havia três dias, agora vem-me com uma proposta matrimonial. Eu que nem mais acredito nessas coisas. A vida é uma montanha-russa: altos e baixos nos quais a gente nem espera. Quando a maré está baixa demais, devemos acautelar-nos para que não nos afoguemos em um tsunami inesperado. Meu Deus, eu não a amo. Nenhuma das duas, aliás. Meus impulsos sexuais me levam a questões que nem mesmo consigo compreender. Talvez Freud explique essa compulsão pelo sexo oposto, pois quando eu era mais novo me vestia com as roupas de minha mãe e...

- E então? – Paula interrompeu o solilóquio silencioso de Glauco.

Deu uma nova golada no uísque.

- Paula, sente-se aqui – conduziu-a até o sofá mais próximo. – Sim, eu estava com alguém há duas horas. Durante o tempo em que estávamos juntos, eu saía ora com uma, ora com outra. De repente, hoje ela me chamou por “amor” – que é um modo carinhoso que foge das minhas carícias linguísticas – e, súbito, você me liga e me faz uma proposta.

- Com quem você estava? – inquiriu ela, a esboçar um choro.

- Com sua prima, Suzana – ele replicou. – E eu não quero relação com nenhuma das duas. Você é canceriana; ela, pisciana.

- E você que é tão racionalista, está se fiando à astrologia?

- Não, mas foi uma maneira de suavizar as coisas. No mais, estou indo embora.

Glauco saiu aliviado. Pensava que as duas tinham o mesmo temperamento, mas em doses diferentes. Só Paula sabia de seu envolvimento com Suzana.

Não demorou muito para que Glauco, a tentar suavizar suas compulsões sexuais, ligasse para as duas. Sem hesitação, elas voltaram – a fingir que uma não sabia da existência de sua relação com a outra.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 01/06/2024
Código do texto: T8076417
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